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13-08-2025 

Venda direta com deságio na falência: alienação como estratégia legítima de maximização do ativo

A administração judicial, ao interpretar o inciso III do artigo 22 da Lei 11.101/2005 no que diz respeito às suas atribuições na falência, depara-se — especialmente das alíneas f a j — com uma das incumbências mais complexas do processo: arrecadar o ativo, avaliá-lo e aliená-lo com o propósito de satisfazer os créditos concursais. Trata-se de função que não pode ser exercida com liberalidade, mas que deve observar os dispositivos legais sobre formas (artigo 140) e modalidades (artigo 142) de alienação, materializando-se em um plano de realização do ativo, a ser apresentado ao juízo no prazo de 60 dias, conforme o artigo 99, § 3º, e tendo como horizonte máximo os 180 dias para a efetiva expropriação dos bens.

A responsabilidade do administrador judicial nesse contexto é significativa. Exige-se equilíbrio entre celeridade, eficiência, mitigação de riscos nas transações, preservação da transparência e credibilidade do processo, além da observância à função social dos meios de produção e à racionalização da destinação dos ativos empresariais [1]. A busca pela maximização do ativo é o princípio orientador da função liquidatária — isto é, voltada à conversão dos bens em recursos financeiros — comumente interpretado como a obtenção do maior valor possível pelo bem. Essa leitura literal, contudo, nem sempre se mostra compatível com a realidade prática da administração falimentar, especialmente em relação a ativos com liquidez restrita ou custos operacionais relevantes.

Escolha da forma de alienação

Nesse sentido, Cássio Cavalli, em artigo recentemente publicado na Agenda Recuperacional [2], defende a correlação entre as características dos bens a serem alienados e as modalidades procedimentais adotadas. O autor sustenta que a eficácia na realização do ativo depende fundamentalmente da escolha adequada da forma de alienação, segundo a natureza dos bens e as condições do mercado em que se inserem. A correta adequação procedimental, afirma Cavalli, constitui fator essencial para mitigar a perda de valor decorrente de impugnações, custos de oportunidade e depreciação dos ativos.

Em determinadas situações, a administração judicial pode se deparar com ativos cuja alienação ideal é impraticável. Equipamentos com décadas de uso, de difícil remoção e que demandam equipes técnicas especializadas, sem possibilidade de teste funcional e paralisados por longos períodos, representam desafios à adoção de modalidades tradicionais. Nesses casos, leilões públicos acarretariam custos expressivos — desmontagem, transporte, armazenamento — que não raro superam o valor realizável do bem, além dos riscos concretos de deterioração ou perecimento. Surge, então, uma pergunta inescapável: é razoável insistir na alienação por certame competitivo se os custos operacionais da venda superam o próprio valor do ativo?

Exemplo de falência do ramo industrial

Considere-se, a título exemplificativo, uma hipótese envolvendo a falência de sociedade empresária do ramo industrial. Nesse cenário, um conjunto de máquinas pesadas permanecia instalado em imóvel locado. A desmontagem e transporte envolviam custos estimados entre R$ 43 mil e R$ 115 mil, enquanto a massa falida não dispunha de caixa. O locador, já há mais de um ano sem receber aluguéis, aguardava a desocupação, podendo ajuizar ação de reintegração de posse a qualquer momento. Nesse cenário, mostra-se plenamente justificável a tentativa de prospecção de interessados no mercado. Ainda que as propostas eventualmente apresentadas representem valores inferiores à avaliação, o risco concreto de perda dos bens e os elevados custos de custódia tornam a venda direta e antecipada, embora excepcional, a alternativa mais eficiente e vantajosa.

No caso ilustrativo, as propostas recebidas garantiriam liquidez imediata, transfeririam ao adquirente todos os encargos de desmontagem e logística e evitariam o acréscimo de passivos extraconcursais. Trata-se do paradoxo típico da venda direta com deságio: aceitar um valor inferior hoje pode ser a única forma de evitar a perda integral do ativo amanhã.

Essa compreensão encontra sólido respaldo doutrinário. Euler da Cunha Peixoto, ao comentar a atual redação do artigo 144 da Lei 11.101/2005, destaca [3]:

“A lei atual foi bem mais liberal, atribuindo ao juiz competência para, desde que requerido justificadamente pelo administrador judicial, determinar outro modo de realização do ativo diverso daqueles enumerados no art. 142. Merece aplausos tal flexibilidade, uma vez que o objetivo será sempre realizar-se o ativo de forma a obter os maiores recursos possíveis. E a vida e o mercado são cheios de surpresas e particularidades, de tal forma que qualquer restrição apriorística poderia, sem dúvida, redundar em prejuízo para a massa.”

De fato, o artigo 113 da Lei 11.101/2005 permite a venda de bens perecíveis, deterioráveis, sujeitos a considerável desvalorização ou de conservação arriscada ou dispendiosa, independentemente das formalidades ordinárias. O artigo 144, por sua vez, faculta ao juízo autorizar modalidades diversas daquelas previstas no artigo 142, desde que haja motivos justificados.

Ainda que o legislador tenha ampliado a margem de discricionariedade, não se trata de liberdade absoluta. Carlos Alberto Garbi, desembargador aposentado do TJSP, pontua que[4]:

“Esses dispositivos da Lei brasileira, mais do que outros, conferem uma margem de liberdade para a realização de ativos nos processos de recuperação judicial e de falência. Essa liberdade, é certo, não é absoluta, porquanto sujeita à deliberação dos credores, à fiscalização do Ministério Público e ao controle do juiz, ao qual a Lei concedeu o poder para autorizar outras modalidades de alienação, ‘havendo motivos justificados’ e observados os princípios e demais disposições legais.”

Evitar deterioração da massa falida

A lei também passou a permitir, em última chamada, a venda por qualquer preço, ainda que inferior ao valor de avaliação, para evitar que ativos obsoletos, sem mercado, se deteriorem na massa falida[5].

Naturalmente, a adoção da venda direta com deságio requer justificativa formal, avaliação técnica, ciência dos credores e autorização judicial. O valor do ativo não deve ser compreendido como um dado fixo e abstrato: ele deve considerar o tempo, os custos e os riscos da inação.

Nesse ponto, em julgado de execução civil, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem evoluído para reconhecer a relatividade do conceito de “preço vil”. No REsp 2.039.253/SP, de relatoria da ministra Nancy Andrighi, a 3ª Turma assentou que, diante de anos de leilões fracassados e deterioração do imóvel, a arrematação por menos de 50% da avaliação não caracterizava preço vil, desde que fosse a única alternativa eficaz de realização do ativo. A ministra enfatizou que a alienação por iniciativa particular, supervisionada pelo juízo, atende aos princípios da razoável duração do processo e da proteção da confiança legítima[6].

Contudo, a insuficiência de liquidez ou o desinteresse do mercado precisam ser demonstrados. Henrique Cavalheiro Ricci, com razão, pondera[7]:

“Na dúvida sobre a possibilidade ou não de o bem ser alienado dentro de um processo competitivo, que isso ao menos seja testado. Ou seja, a não ser que esteja patente a impossibilidade de se estabelecer competição entre eventuais interessados, pelo menos se oportunize a competição. Afinal, como tentar atrair a aplicação do artigo 144 — e dizer que há motivos justificados para ser realizada a alienação por modalidade diversa da concorrencial — se nem ao menos buscou-se a alienação por tal meio?”

Sensibilidade além do conhecimento

A aplicação prática da Lei 11.101/2005, especialmente diante das reformas e dos debates legislativos em curso, exige do administrador judicial mais do que conhecimento técnico: exige sensibilidade econômica, articulação com o mercado e responsabilidade institucional. A alienação direta com deságio, quando realizada com estratégia, transparência e critério, concretiza a maximização do ativo sob uma ótica realista e eficiente.

Nem sempre é possível alcançar o maior valor por um ativo em falência. Em muitos casos, o tempo, a liquidez, os custos de conservação e o contexto operacional impõem uma nova lógica: a venda possível — e não a ideal — é a que preserva valor e evita que o ativo se transforme em despesa.

Vender bens da massa falida por negociação direta e com deságio significativo exige fundamentação robusta e observância de critérios técnicos e legais. A maximização do ativo, portanto, não é sinônimo de cifra absoluta, mas sim de uma gestão responsável e estratégica da alienação forçada, orientada ao melhor resultado possível diante das circunstâncias concretas.

 

[1] É possível extrair tais princípios da leitura dos artigos 75, § 2º, incisos IV e VI, e do artigo 167-A da Lei 11.101/2005 (embora este último esteja inserido no capítulo sobre insolvência transnacional).

[2] CAVALLI, Cássio. Novas modalidades de alienação de ativos na recuperação judicial e na falência: os exemplos do stalking horse e do credit bid. Agenda Recuperacional, São Paulo, v. 3, n. 41, p. 1-21, jul. 2025. Disponível aqui.

[3] A venda direta como alternativa estratégica na falência. In: CORRÊA-LIMA, Osmar Brina; CORRÊA-LIMA, Sérgio Mourão (coord.). Comentários à Nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 991.

[4] GARBI, Carlos Alberto. A venda de ativos na falência e na recuperação judicial: principais questões. Migalhas, 15 fev. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 31.7.2025.

[5] Lei 11.101/2005, artigo 142, § 2º-A, V (incluído pela Lei 14.112/2020).

[6] STJ, REsp 2.039.253/SP, 3ª Turma, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 19.9.2023.

[7] A venda direta na falência. ConJur, 16 jul. 2024. Disponível aqui.

 

Fonte: Conjur.

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