NOTÍCIAS

26-08-2025
Recuperação judicial: da ilegalidade do deságio
A maioria dos planos de recuperação judicial prevê um abatimento (deságio) sobre o valor dos créditos. No caso dos credores que aprovaram o plano de recuperação judicial, não há um problema jurídico, pois é uma decisão amparada na autonomia da vontade desses credores, os quais podem renunciar a parte de seu crédito. Entretanto, a imposição do deságio aos credores vencidos é inconstitucional porque significa uma supressão de direito de propriedade, vedada pelo artigo 5º, XXII, da Constituição.
A propriedade tem uma dimensão ampla, não se resumindo a coisas tangíveis. Aplicações financeiras, ações, títulos de dívida, direitos de crédito, ainda que intangíveis, têm clara conotação patrimonial e, por isso, devem ser igualmente protegidos enquanto um direito de propriedade.
Com efeito, como lembra Pinto Ferreira [1], sob a perspectiva constitucional, o direito de propriedade “representa um direito de conteúdo econômico-patrimonial. A garantia do direito de propriedade não se limita por consequência ao direito real, mas também incide nos direitos pessoais, de fundo patrimonial. Caso se concedesse uma interpretação restritiva ao direito de propriedade, não estariam tutelados os créditos, que não teriam a tutela jurídico-constitucional e que poderia ser desapropriado sem indenização, o que não é o caso”.
Em sentido semelhante, Arruda Alvim [2]: “A Constituição Federal de 1988 (…), ao prever e garantir o Direito de propriedade (art. 5º, inciso XXII), não nos apresenta um conceito, uma definição ou indica o que pode ser objeto de propriedade. Destarte, podemos englobar, na previsão constitucional, não apenas os bens imóveis e móveis, mas todo e qualquer bem de valor econômico, material ou imaterial, significativos de patrimonialidade.”
Direito de crédito
Nesse contexto, cumpre analisar como o direito de crédito pode conviver com as regras da recuperação judicial, notadamente considerando que essas regras, em certas circunstâncias, têm uma conotação de intervenção estatal na seara econômica de terceiros, na medida em que modifica os termos contratuais estabelecidos pelas partes.
O instituto da recuperação judicial (Lei nº 11.101/2005) pretende “viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica” (artigo 47). Cuida-se de uma solução estatal para um problema particular, em razão dos impactos para a coletividade.
Para tanto, a lei prevê um período de suspensão da exigibilidade das dívidas sujeitas à recuperação judicial (artigo 6º), com vistas a permitir à devedora a formulação de um plano de reestruturação financeira para deliberação por seus credores, considerados em classes (credores trabalhistas; credores enquadrados como microempresa ou empresa de pequeno porte; credores quirografários; e credores com garantia real).
A aprovação do plano de recuperação judicial depende da aprovação em todas as classes; se aprovado, obriga todos os credores, inclusive os vencidos (artigo 59).
A lei trouxe alguns exemplos de meios de recuperação judicial, não taxativos (artigo 50). A devedora e os credores têm liberdade para escolher os meios mais adequados à situação específica de crise da devedora, mas essa liberdade na definição dos meios de recuperação judicial deve respeitar a legalidade [3].
Portanto, para que o plano de recuperação judicial seja válido, ele não pode violar os direitos fundamentais dos credores vencidos.
Direito de propriedade
O direito de propriedade tem uma proteção quase absoluta na Constituição. Ele só cede em situações extremas e, ainda assim, preservado um núcleo mínimo, exigindo-se, sempre, uma dose de proporcionalidade entre o interesse coletivo e os direitos da parte afetada.
Nesse sentido, cita-se alguns exemplos de como o ordenamento jurídico brasileiro faz essa ponderação de valores quando envolvido o direito de propriedade.
Primeiro, menciona-se a hipótese de desapropriação. A Constituição condiciona a expropriação de qualquer propriedade particular ao pagamento da justa indenização. Desse modo, caso exista um interesse público muito relevante numa propriedade específica, para que o Estado possa tomar essa propriedade, faz-se necessário que ele pague a justa indenização (artigo 5º, XXIV, da Constituição).
Sem o pagamento da indenização respectiva, o Estado não pode se apropriar nem daquelas propriedades que descumprem a função social. Nesses casos, permite-se apenas que a indenização seja paga com títulos públicos, mantendo-se sempre o “valor real” (artigo 182, §4º, III e artigo 184 da Constituição); nunca é possível a supressão da propriedade pura e simples, a troco de nada.
Exemplo da patente de remédios
Outro exemplo é o das patentes de remédios. Mesmo diante de uma emergência nacional ou calamidade pública, o Estado somente pode suprimir o direito do titular da patente via licenciamento compulsório mediante procedimento excepcional, com o devido pagamento da indenização respectiva (artigo 71 da Lei nº 9.279/1996). De novo, não há possibilidade de pura e simples supressão do direito do titular da patente.
Também se lembra que, quando o próprio Estado é devedor de alguém, ele não pode impor um deságio sobre o valor dessa dívida contra a vontade de seu credor. O limite da Constituição é permitir que o Estado adie esse pagamento para o futuro, por meio da fila de precatórios, e ainda assim mediante o acréscimo dos encargos pertinentes (artigo 100 da Constituição; artigo 1º-F da Lei nº 9494/1997).
Por outro lado, no que se refere ao próprio crédito da Fazenda em face da devedora em recuperação judicial, a solução legislativa não foi dar um abatimento da dívida, mas sim apenas um parcelamento especial (artigo 10-A da Lei nº$ 10.522/2002). Como se vê, em que pese a função social da empresa, não se concebeu a renúncia de parte do crédito da Fazenda.
Em suma, sem a devida contraprestação, nem o Estado, enquanto representação máxima de toda a coletividade, tem o poder de suprimir o direito de propriedade de alguém, seja sobre uma coisa tangível (imóvel) ou um bem intangível (patente ou crédito).
Deságio sobre o crédito
Nessa linha, também não se vislumbra amparo constitucional para que seja possível que uma assembleia de credores possa ter o poder de suprimir o direito de propriedade de outros credores. Isso significaria dar a particulares uma prerrogativa que o próprio Estado não possui, nem mesmo no contexto de situações em que o interesse público é muito mais evidente. A soberania da assembleia de credores tem limites.
O deságio sobre o crédito significa um enriquecimento da devedora em prejuízo dos credores. O que ocorre nessa situação é o deslocamento patrimonial de um ativo de titularidade dos credores para a devedora. Afinal, ela adquiriu um produto ou serviço e, com o deságio previsto no plano de recuperação judicial, propõe-se a pagar apenas um percentual do valor do produto ou serviço adquirido. Deságios acima de 15% normalmente não cobrem nem os custos daquele produto ou serviço, porque raros negócios têm margem líquida de rentabilidade superior a esse porcentual.
Aliás, nessa linha, a Receita Federal entendeu recentemente que esse acréscimo patrimonial obtido pela devedora com a aprovação do plano de recuperação judicial configura uma receita tributável, sujeita à incidência de IRPJ/CSLL no momento da homologação do plano de recuperação (Solução de Consulta Cosit nº 74/2025).
Em suma, os deságios previstos nos planos de recuperação judicial representam, para os credores que os aprovam, uma renúncia voluntária ao direito de crédito. Essa renúncia, porém, não pode ser imposta aos credores vencidos, pois isso configuraria uma violação ao direito de propriedade desses credores. A assembleia de credores não possui legitimidade para suprimir esse direito da minoria dissidente. Assim, qualquer plano de recuperação judicial que contenha cláusula de deságio vinculante aos credores vencidos incorre em ilegalidade.
[1] Citado por OLIVEIRA, Álvaro Borges de. Uma definição de propriedade. Disponível aqui.
[2] Citado por CAMBLER, Everaldo Augusto. Bens móveis e imóveis. Disponível aqui.
[3] AgInt no REsp 2160103/SP, Rel. Ministro João Otavio de Noronha, 4ª Turma, STJ, DJEN 10.04.2025; REsp 1.660.195/PR, Rel. Ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, DJe 10/4/2017.
Fonte: Conjur.