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05-07-2025
Receita fixa momento do fato gerador do IRPJ e da CSLL incidente sobre deságio na RJ
No último dia 14 de maio, foi publicada a Solução de Consulta nº 74, de 17 de abril de 2025, na qual a Coordenação-Geral de Tributação (Cosit) da Receita Federal se posicionou, pela primeira vez, acerca do momento da ocorrência do fato gerador do Imposto sobre a Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) cobrados sobre o deságio obtido pelo devedor no âmbito da recuperação judicial.
Nas renegociações que ocorrem no processo de recuperação judicial (RJ), é prática comum que os credores aceitem receber seus créditos com abatimentos substanciais, denominados deságios ou, em inglês, haircuts. A Receita Federal entende que esse abatimento configura ganho da empresa recuperanda, qualificando-o como insubsistência de passivo, passível de tributação pelo IRPJ e pela CSLL.
A solução de consulta em questão limitou-se a definir o momento em que, segundo a Receita, ocorre o fato gerador do tributo, não abordando, propriamente, a legitimidade da incidência.
O consulente, submetido à recuperação judicial, reconhecendo o entendimento da Receita Federal quanto à incidência do IRPJ e da CSLL sobre o deságio, questionou se o fato gerador ocorreria: na data do trânsito em julgado da decisão que homologa o plano de RJ; ou somente após o decurso do biênio de fiscalização judicial (artigo 61 da Lei nº 11.101/2005).
Dúvida sobre o fato gerador
A dúvida surgiu do fato de que, embora o valor do deságio seja conhecido na data da homologação, e tenha seus termos definidos com o trânsito em julgado, não há, naquele momento, disponibilidade econômica nem certeza de que o plano será cumprido — o que, se descumprido, acarretaria a decretação da falência, com restauração das condições originais dos créditos.
A Receita, contudo, entendeu que a concessão da recuperação judicial produz efeitos patrimoniais imediatos, representando uma inovação definitiva, ainda que sujeita a condição resolutiva. Com base no artigo 117, II, do CTN, sustentou-se que o fato gerador ocorre no momento da homologação, independentemente da possibilidade de reversão futura.
Ainda que se reconheça que a novação decorrente da homologação do plano configura, tecnicamente, uma situação jurídica constituída, a aplicação do artigo 117, II, do CTN não afasta o requisito da disponibilidade previsto no artigo 43 do mesmo Código, muito menos implica a caracterização do ato de homologação como o fato gerador da obrigação tributária. A disponibilidade — econômica ou jurídica — exige a incorporação definitiva da renda ao patrimônio do contribuinte, o que, na hipótese do haircut, não se verifica no momento da homologação do plano.
Além disso, inexiste norma legal específica que defina o momento do fato gerador do IRPJ e CSLL sobre deságios em recuperação judicial. O artigo 50-A da Lei nº 11.101/2005, embora regule aspectos fiscais do plano, não trata da temporalidade da tributação.
Disponibilidade de renda ou disponibilidade jurídica?
Essa interpretação, portanto, suscita críticas técnicas relevantes. A principal delas diz respeito ao conceito de “disponibilidade da renda”, tal como previsto no caput do artigo 43 do CTN: “O imposto […] tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica da renda ou dos proventos de qualquer natureza.”
A Cosit parece ter se ancorado na ideia de disponibilidade jurídica, assumindo que a remissão parcial da dívida equivaleria a um ingresso patrimonial juridicamente disponível, ainda que sem realização econômica imediata. No entanto, não há, na data da homologação, certeza quanto à eficácia do plano. A própria Lei nº 11.101/2005 prevê que a inexecução do plano acarreta a falência e a reconstituição integral dos créditos, o que evidencia que os efeitos do deságio estão sujeitos a reversão judicial — o que afasta, por definição, a ideia de disponibilidade.
A doutrina tributária brasileira consagra que a disponibilidade pressupõe definitividade. Como leciona Hugo de Brito Machado: “a renda não se confunde com sua disponibilidade. Pode haver renda, mas não estar disponível para seu titular. Não basta ser credor da renda se esta não está disponível, e a disponibilidade pressupõe ausência de obstáculos jurídicos a serem removidos” (Curso de Direito Tributário, 32ª ed., Malheiros, 2011, p. 321).
Essa exigência de definitividade é também imposta pelos princípios constitucionais da capacidade contributiva (artigo 145, §1º, da Constituição) e da vedação ao confisco (artigo 150, IV), que vedam a tributação de acréscimos patrimoniais incertos ou reversíveis.
Em hipóteses análogas, como nas remissões concedidas em parcelamentos especiais, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) reconheceu que “a anistia e remissão ofertadas na Lei não gerou o ingresso de receitas ou elementos novos e positivos para as empresas, não havendo que se falar em aumento da receita bruta, tampouco em lucro obtido pelas empresas”. (acórdão nº 1402-007.104, sessão de 10/09/2024), deixando de reconhecer, portanto, a caracterização insubsistências de passivos como novos ingressos de renda, ainda que tenham gerado reduções no passivo das empresas, tal qual os haircuts.
Em outra oportunidade, no entanto, tratando especificamente sobre a tributação do haircut, o tribunal adotou entendimento similar ao da nova SC, considerando que “a remissão de dívida importa para o devedor (remitido) acréscimo patrimonial (receita), por ser uma insubsistência do passivo, cujo fato imponível se concretiza no momento do ato remitente” (acórdão 1401-006.962, sessão de 14/05/2024).
Na SC Cosit nº 74/2025, a Receita sustenta que o deságio obtido em recuperação judicial configura aquisição de disponibilidade jurídica, nos termos do artigo 43 do CTN, com base no argumento de que a extinção parcial do passivo, sem redução equivalente de ativos, elevaria a situação patrimonial líquida da empresa. No entanto, os elementos justificadores apresentados, como a referência à “insubsistência ativa” e ao “lançamento a crédito em conta de resultado”, pertencem claramente ao domínio contábil e não jurídico-tributário.
A SC, assim, adota um raciocínio ancorado em variação patrimonial contábil para afirmar a ocorrência de disponibilidade jurídica, invertendo a lógica prevista no ordenamento tributário. Conforme decidiu o STF no RE 606.107-RS, a contabilidade pode ser utilizada como ferramenta auxiliar, mas a ocorrência do fato gerador tributário deve observar os princípios e limites do direito tributário, exigindo a efetiva integração de um elemento novo e positivo ao patrimônio do contribuinte, sem reservas ou condições.
Risco de inviabilizar recuperação judicial
O modelo de tributação defendido na SC ignora, ainda, o contexto excepcional das empresas em recuperação judicial, para as quais a imposição de encargos fiscais sobre um ganho meramente contábil, incerto e reversível, pode inviabilizar a própria função do instituto da recuperação. O artigo 50-A da Lei nº 11.101/2005, ao neutralizar parcialmente os efeitos fiscais do deságio, reconhece essa condição, mas não resolve o problema central: a imposição de uma carga tributária antecipada e descolada da efetiva capacidade contributiva do contribuinte.
Não se discute que a contabilidade é usada como ponto de partida para a definição e quantificação de diversos eventos relevantes ao direito tributário, especialmente no regime de apuração com base no lucro real. Contudo, essa utilização está subordinada aos critérios estabelecidos pela legislação tributária, que prevalecem sobre normas, conceitos e práticas contábeis para fins fiscais.
A contabilidade é orientada pela finalidade informativa, ou seja, visa refletir com fidelidade a situação patrimonial e financeira da empresa aos interessados (investidores atuais e potenciais, credores etc.). Por isso, deve registrar, de forma fidedigna, os efeitos econômicos de eventos e transações que afetem os ativos e passivos da entidade.
Nessa perspectiva, o Pronunciamento Técnico CPC 00 estabelece, em seus itens 4.47 e 4.48, que “a receita deve ser reconhecida na demonstração do resultado quando resultar em aumento nos benefícios econômicos futuros relacionado (…) com diminuição de passivo”, restringindo o reconhecimento como receita àqueles itens “que possam ser mensurados com confiabilidade e tenham suficiente grau de certeza”.
Homologação do plano não significa aquisição de renda
Essa exigência de certeza entra em choque com a realidade prática da recuperação judicial no Brasil, onde a maior parte das empresas não consegue cumprir integralmente os planos aprovados. Assim, considerar que a homologação do plano, por si só, configura aquisição definitiva de renda mostra-se prematuro e tecnicamente inadequado.
Nos termos do artigo 184, inciso III, da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976 (Lei das S.A.), “as obrigações, os encargos e os riscos classificados no passivo não circulante serão ajustados ao seu valor presente, sendo os demais ajustados quando houver efeito relevante”. O item 2 do Pronunciamento Técnico CPC nº 12 complementa essa diretriz ao prever que “a utilização de informações com base no valor presente concorre para o incremento do valor preditivo da Contabilidade; permite a correção de julgamentos acerca de eventos passados já registrados; e traz melhoria na forma pela qual eventos presentes são reconhecidos”.
A Lei nº 12.973, de 13 de maio de 2014, que adaptou a legislação tributária brasileira às normas contábeis instituídas a partir da Lei nº 11.638, de 28 de dezembro de 2007 (aí incluídos os Pronunciamentos Técnicos do CPC), incorporou expressamente esse critério. Em seu artigo 5º, inciso III, estabeleceu que “os valores decorrentes do ajuste a valor presente, de que trata o inciso III do caput do art. 184 da Lei nº. 6.404, de 15 de dezembro de 1976, relativos a cada operação, somente serão considerados na determinação do lucro real no período de apuração em que: (…) III- o ativo for realizado (…)”.
Aplicar esse critério à recuperação judicial implica reconhecer o ganho fiscal relacionado ao deságio apenas à medida em que os pagamentos forem efetivamente realizados aos credores, o que melhor traduz a realidade econômica da empresa e evita distorções na apuração do lucro tributável. Isso também está em conformidade com o item 5.31 do CPC 00, que adverte contra o reconhecimento de informações que possam sugerir alterações patrimoniais mais significativas do que efetivamente ocorridas.
Caso não se adote o critério do valor presente, deve-se considerar, alternativamente, a mensuração dos passivos pelo valor justo. O item 42 do Pronunciamento Técnico CPC nº 46 estabelece que “o valor justo de um passivo reflete o efeito do risco de descumprimento (non-performance)”, risco esse que é inerente à natureza da recuperação judicial no Brasil.
Análise do Judiciário e tribunais superiores
Conforme orienta o Manual de Contabilidade Societária da Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e Financeiras (Fipecafi), como regra geral, os valores registrados na conta de Ajustes de Avaliação Patrimonial, em decorrência de sua avaliação a valor justo, “deverão ser transferidos para o resultado do exercício à medida que os ativos e passivos forem sendo realizados”. A Lei nº 12.973/2014, em seu artigo 13, § 1º, consolida essa diretriz ao dispor que os ganhos decorrentes de avaliação de ativo ou passivo com base no valor justo devem ser computados na determinação do lucro real “à medida que o ativo for realizado“, “ou quando o passivo for liquidado ou baixado”.
Ainda que não se trate de relação contratual com contraprestação propriamente dita, é pertinente, por analogia, a regra do item 72 do Pronunciamento Técnico CPC 47, segundo a qual “(…) se a contraprestação a pagar ao cliente for contabilizada como redução do preço da transação, a entidade deve reconhecer a redução das receitas quando (ou à medida que) o último de qualquer dos eventos a seguir ocorrer: (…) quando a entidade pagar ou prometer pagar a contraprestação”. Por extensão, o reconhecimento do ganho tributável também deve observar esse critério de realização.
Tanto na contabilidade quando na legislação tributária, os pagamentos parcelados e o risco de inadimplemento (non-performance) são determinantes para a definição do momento do reconhecimento do ganho. O oferecimento à tributação deve, portanto, acompanhar a efetiva realização econômica — no caso, o cumprimento do plano e o pagamento das parcelas aos credores.
Diante das críticas ao inédito entendimento firmado pela Receita a matéria ainda deve ser submetida ao controle judicial, especialmente à luz dos princípios constitucionais da capacidade contributiva e da vedação ao confisco, e exigirá análise criteriosa por parte do Poder Judiciário e dos tribunais administrativos superiores.
Fonte: Conjur.