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26-08-2025 

O poder soberano dos credores na recuperação judicial de empresas

Na recuperação judicial de empresas, o poder soberano dos credores de votar como lhes convier é limitado pelos princípios da legalidade e da boa-fé objetiva.

"(...) factores que convierten a la empresa y a su suerte en algo más importante que lo supone la mera tensión entre el titular-deudor y sus acreedores. Intereses públicos y sociales se superponen al puro interés privado de satisfacción de los créditos." (Manuel Olivencia Ruiz)1

I - Art. 39, § 6º, da lei 11.101, de 2005

A LFRE - Lei de Falências e Recuperação de Empresas dispõe:

"Art. 39, § 6º: O voto será exercido pelo credor no seu interesse e de acordo com o seu juízo de conveniência e poderá ser declarado nulo por abusividade somente quando manifestamente exercido para obter vantagem ilícita para si ou para outrem."

II - Direito Comparado

Nas legislações espanhola, portuguesa, argentina, chilena e uruguaia, que disciplinam a reestruturação da empresa em estado de crise econômico-financeira, não há regra igual, nem mesmo semelhante, à do § 6º do art. 39; duvido que outros sistemas jurídicos autorizem o credor a "votar no seu interesse e de acordo com o seu juízo de conveniência" na assembleia de credores (grifos meus).

A lei de concursos da Espanha, arts. 637 e segs.; o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas de Portugal, art. 212º; a lei de concursos e falências da Argentina, art. 45; a lei de reorganização e liquidação de empresas do Chile, art. 79, e a lei de processo concursal do Uruguai, art.144.1., não se aventuraram a prescrever como o voto será exercido pelo credor, apenas se limitaram ao que lhes cumpria fazer: fixar o quórum de deliberação da assembleia, tal qual o art. 42 da LFRE.

O Código Comercial francês, ao tratar dos procedimentos de salvaguarda  e de recuperação judicial, somente se refere ao quórum de dois terços dos votos de cada classe (art. L626-30-2, quinta alínea) para aprovação do plano pelos credores.

Através da portaria 2021-1193, de 15/09, a França substituiu a assembleia de credores pela votação por classes (art. L626-30): classe dos credores quirografários (instituições financeiras e fornecedores de bens e serviços) (art. L626-30, 1º), classe dos acionistas (art. L626-30, 2º) e classe dos titulares de créditos com garantia real (art. L626-30, III, 1º), subsistindo a assembleia de obrigacionistas (credores de títulos lançados no mercado de capitais e valores mobiliários).2

O Código da Crise da Empresa e da Insolvência da Itália suprimiu, também, a assembleia de credores e a votação passou a ser realizada exclusivamente por meio eletrônico, não havendo previsão legal sobre o direito de voto do credor, porém, apenas, que a  proposta será aprovada se obtiver a concordância de credores titulares da maioria dos créditos admitidos no processo (art. 109.1.).

O Código de Falências dos EUA, quando cuida do voto do credor sobre o plano de reorganização do "devedor na posse", estabelece - simplesmente - que "o titular de um crédito ou direito (...) poderá aceitar ou rejeitar o plano" (art. 1.126.(a)) e, logo a seguir, fixa o quórum de aprovação em cada classe (art. 1126 (c) e (d)).

Por isso, e demais razões expostas a seguir, o legislador, ao acrescentar o § 6º ao art. 39, enveredou por um caminho tortuoso, pois exonerou o credor do dever de ponderar o que deve prevalecer: o seu próprio interesse, ainda que egoístico, ou a manutenção da fonte produtora de bens e serviços e do emprego dos trabalhadores e a preservação da função social da empresa e o estímulo a atividade econômica (art. 47 da LFRE).

III - A contundente redação do § 6º, do art. 39, da LFRE

De forma clara e incisiva, que faz recordar os axiomas in claris cessat interpretatio e in claris non fit interpretatio, o § 6º preceitua que o credor tem o direito potestativo de votar "no seu interesse".3

Para que não pairem dúvidas e surjam e proliferem controvérsias sobre a voluntas legislatoris e a mens legis ou ratio legis, o § 6º aduz: "O voto será exercido pelo credor (...) de acordo com o seu juízo de conveniência".

O legislador, ao empregar os vocábulos "interesse" e "conveniência" no mesmo dispositivo, conferiu ao credor o poder soberano (soberano, sim; absoluto, não) de votar em seu benefício e proveito exclusivos se entender oportuno e conveniente.

Como se não bastasse, houve por bem "esclarecer", em uma temerária interpretação autêntica, a forma pela qual o Judiciário deve decidir quando a lide versar sobre "abuso do direito de voto", ao valer-se do advérbio (de exclusão) "somente" e do advérbio (de modo) "manifestamente" na parte final do § 6º, que reza: o voto "somente" será "declarado nulo (...) quando manifestamente exercido para obter vantagem ilícita para si ou para outrem o voto" (grifos meus).

IV - Exegese do § 6º, do art. 39, da LFRE

A exegese do § 6º não exige especial esforço de análise e interpretação; tampouco consulta a manuais, livros ou tratados de hermenêutica jurídica e aplicação da lei, embora demande certos juízos de valor.

Com efeito, é suficiente recorrer ao elemento literal para concluir:

(a) observados os princípios da legalidade e da boa-fé objetiva, a vontade do credor é incontrastável;

(b) o credor tem plena independência e autonomia para, discricionariamente, votar como lhe convier, não importam as consequências, ainda que nefastas, de seu voto, como soem ser as decorrentes da decretação da falência do devedor;

(c) a norma do § 6º é induvidosamente contrária ao espírito da LFRE, lei que tem por escopo viabilizar a superação das dificuldades financeiras da empresa pré-insolvente, assegurar a continuidade das atividades e negócios sociais, manter em funcionamento uma entidade geradora de riquezas, conservar os empregos dos trabalhadores, assegurar os direitos dos credores e incentivar a atividade econômica com a finalidade de a empresa cumprir sua função social.

V - Direito da empresa em crise

Estou convencido de que a reforma de 2020:

(a) ignorou que a concepção privatista, individualista e subjetiva própria das legislações falimentares clássicas está superada e sendo substituída por uma concepção publicista, socializadora e objetiva;

(b) ignorou que o art. 47 da LFRE dá concretude aos princípios da livre iniciativa e da função social da empresa e à garantia do direito ao trabalho (CF, arts. 1º, IV, 6º, e 170, caput, e par. único, inc. III);

(c) ignorou o fato inquestionável de que houve uma revolução no Direito da Insolvência, a partir da mudança de paradigma nas legislações de muitos países ocidentais sobre o fenômeno patológico da falência, fruto de uma evolução cultural, de valores e de fins, lenta, gradual, progressiva e irreversível, porquanto se, nos primórdios, quebrava-se a "banca" do devedor, hoje, concede-se-lhe, p.ex., um stay period, um fresh start, a alienação de bens do ativo livre de ônus (art. 60), a venda de unidade produtiva isolada sem sucessão nas obrigações e dívidas (art. 60-A) etc.,  para que, comprovada sua viabilidade econômico-financeira, se reorganize e se recupere;

(d) ignorou um dos principais fundamentos do novo instituto - a ética da solidariedade -, porquanto, como ressaltei alhures, "(...) nos 'procedimentos de sacrifício', a lógica do mercado, apanágio do sistema capitalista e da teoria da maximização dos lucros, deve ceder diante dos ditames da ética da solidariedade (...);"4

(e) ignorou o movimento universal que culminou no surgimento do "direito da empresa em crise" ou "direito da crise econômica da empresa", em virtude da insuficiência e da inadequação da falência/concordata/moratória/suspensão de pagamentos às exigências da realidade econômica atual.

Sobre o tema, em 1966, escrevi5: "(...) Giuseppe Baveta, professor associado na Universidade de Palermo, no excelente estudo Il Diritto dell'Impresa in Crisi, publicado na revista Il Diritto Fallimentare6, advertiu aos amantes do vetusto direito falimentar que, da pena criativa e ousada dos doutos, apesar de extraordinários percalços e incompreensões, começava a despontar uma complexa e desafiadora disciplina jurídica, diversa, por sua natureza, pressupostos, fundamentos, conteúdo e finalidades, do arcaico direito de quebras, cuja denominação poderia ser direito da empresa em crise, inspirada, nas palavras sábias de Angel Rojo Fernandes-Rio7, numa nova filosofia do direito concursal, que pretende garantir não apenas (i) os direitos e interesses da empresa, (ii) os direitos e interesses dos empregados e (iii) os direitos e interesses dos credores, mas, também, quiçá sobretudo, os interesses da comunidade em que ela atua, pois as dificuldades econômicas, financeiras, técnicas, tecnológicas e gerenciais da empresa não preocupam somente à empresa e a seus credores, porém, por igual, ao Poder Público e à coletividade, sendo certo que, além e acima do interesse privado de composição dos conflitos entre a empresa e seus credores, há o interesse público e social de saneamento, reorganização, preservação e desenvolvimento da empresa."8

Se, no império da "lei de bancarrotas", era lícito - e tragicamente comum - "matar" e "esquartejar" o devedor, hoje, o "direito da empresa em crise" tem como ideia motriz a realização de valores metaindividuais, rectius, o interesse público e social e o bem-estar coletivo, sem desprezar a proteção dos legítimos direitos e interesses dos credores.

VI - O § 6º e os sistemas jurídicos

Os sistemas jurídicos são flexíveis, ou melhor, dinâmicos, pois são formados/aprimorados por força das mudanças, por vezes radicais, por vezes abruptas, por vezes radicais e abruptas, nos diversos setores da sociedade, o que impõe descartar/suprimir o obsoleto/ultrapassado pelo moderno/contemporâneo.

O sistema de valores em que se baseia o § 6º está obsoleto; ultrapassada, a ideia de que devem prevalecer os direitos e interesses dos credores quando o devedor enfrenta uma situação de dificuldades financeiras, razão pela qual, na próxima revisão da LFRE, ele deve ser revogado e substituído por outro em linha com o que há de mais moderno em matéria de "direito da pré-insolvência" ou "direito da insolvência reversível" ou "direito da empresa em crise", eis que a recuperação judicial da empresa é um instituto de  direito econômico9, de direito semipúblico porque situado entre o direito público e o direito privado.10

_______

1 Catedrático de Direito Mercantil da Universidade de Sevilha, Los sistemas económicos y las soluciones jurídicas al estado de crisis empresarial, in La Reforma del Derecho de Quibra, Civitas, 1982, p. 109. 

2 Rapport sur les classes de créanciers pour la transposition de la directive du 20 juin 2019 relative aux cadres de restructuration préventive, disp. www.banque-france-fr; e Les classes de créanciers, do Prof. Jean-Jacques Ansault, Panthéon- Assas Université Paris, dip. www.irda.assas-universite.fr Anote-se: as classes substituem os comitês de credores e todos os credores afetados pelo plano e, também, os acionistas participam da sua discussão e votação. 

3 "Le concept d'intérêt est proteiforme en droit, car il est susceptible de nombreuses acceptions.(...) On peut, cependant, trouver un trait commun à toutes les définitions de l'intérêt: l'idée de valeur, d'avantage, de satisfaction qui peut permettre de définir brièvement cette notion comme "ce qui motive les individus à agir", de Ibrahim Ndam, Doutor em direito, Mestre-Assistente na Universidade de Yaound da República de Camarões, disp. www.lexbase.fr  

4 Comentários ao art. 47, in Comentários à LRFE, coord. Carlos Henrique Abrão e Paulo F.C. Salles de Toledo, Saraiva, 6ª. ed., p. 182, nº 7.

5 Estudo Direito da Crise Econômica da Empresa, in Direito Concursal, Forense, 1996, p. 160/205.

6 Casa Editrice Dott, vol. LXIII, pp. 351-364.

7 El Estado de Crisis Econômica, in La Reforma del Derecho de Quiebra, Civitas, 1982, p. 127.

8 La Reintegración de la Massa em los Procedimentos Concursales, Dir. Fall., 1988, vol. I, p. 351.

9 Meus comentários à LFRA, ob., cit. p. 178/180, nº 3.3.

10 Doutrina Orlando Gomes: "(...) o direito econômico, compreendendo, como compreende, regras de direito civil, comercial, administrativo, penal e tributário, desenvolve-se numa zona intermediária, que não é de direito privado, nem de direito público." (Direito Econômico, Orlando Gomes e Antunes Varela, Saraiva, 1977, p. 4, nº., 4).

 

 

Fonte: Migalhas.

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