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15-08-2025
Extensão do cabimento de recuperação judicial para outras cooperativas além das médicas
Este não será propriamente um texto em que se defenderá o cabimento de recuperação judicial para cooperativas por serem elas agentes econômicos. Sobre isso já há muita coisa escrita. A propósito, por uma questão de honestidade intelectual, fica o registro de que mantinha posição contrária ao argumento de que caberia recuperação judicial às cooperativas — e aqui poderíamos extrapolar para as associações sem fins lucrativos, por exemplo — tão somente pelo fato de elas, eventualmente, desenvolverem atividade econômica.
É óbvio que agentes econômicos não empresariais, como fundações, associações e cooperativas, também desempenham papel relevante ao desenvolvimento socioeconômico do país, mas, ainda assim, nunca me pareceu ser a melhor escolha submeter sujeitos tão distintos entre si e com finalidades tão peculiares, ao mesmo sistema de tratamento da crise destinado aos empresários.
Importante ter em mente que não é a atividade, em si, que, necessariamente, distinguirá tais agentes. Muitas vezes, o mesmo tipo de atividade pode ser desenvolvida por agentes diferentes. É o que acontece, por exemplo, com os planos de saúde, atividade comumente realizada tanto por sociedades empresariais quanto por sociedades cooperativas. Outro exemplo é a atividade hospitalar, ora desempenhada por associações sem fins lucrativos ora realizada por sociedades empresariais. Serviços financeiros, atividade educacional, enfim, muitos são os casos de atividades desempenhas por agentes econômicos de perfis distintos entre si.
Portanto, embora, em certos casos, cooperativas, empresários (pessoa física ou pessoa jurídica) e associações possam até realizar o mesmo objeto, são muito diversos em, pelo menos, dois pontos: estrutura jurídica e finalidades. É claro que, por vezes, pode ser que, a depender da atividade, o grau de regulamentação seja maior, a ponto de, eventualmente, a legislação exigir uma determinada estrutura jurídica para exercício da atividade. A de seguros é um exemplo, pois somente pode ser exercida por sociedade anônima ou cooperativa.
Enquanto um hospital constituído sob o formato empresarial tem por finalidade, dentre outras coisas, o lucro, o constituído sob a forma de associação certamente não terá por fim remunerar o titular do seu capital social por meio do lucro, ao contrário, sua finalidade possivelmente será atender os interesses daqueles que, muitas vezes, nem sequer compõem a estrutura associativa, no interesse da sociedade em geral ou de parcela específica.
Situação similar tem-se quanto às instituições que prestam serviços financeiros. Enquanto o acionista de um banco, constituído sob a forma de sociedade anônima, mais participará do resultado quanto mais ações titularizar, em uma cooperativa de crédito os benefícios serão gerados aos cooperados na intensidade de seu relacionamento com a cooperativa. Ganha mais não aquele que for titular de mais capital social, mas aquele que “praticar mais ato cooperado”.
Com finalidades tão diversas, não seria possível atribuir-lhes o mesmo regime jurídico. Daí a existência de regimes distintos, tanto sob a ótica estrutural (empresarial e não empresarial), como tributária, dentre outras, o que fazia com que viesse sustentando que o ideal fosse existir um regime jurídico próprio para tratamento da crise de agentes não empresariais. Isso também por conta da redação bastante clara do artigo 1º da Lei 11.101/2005 que, em tese, autoriza o acesso à recuperação judicial somente aos empresários.
Importante que fique claro que a dificuldade em conceber recuperação judicial às cooperativas, além de ser decorrente da dupla vedação que até então existia na Lei 11.101/2005 [1], também decorria da falta de adaptação dela para problemas daí decorrentes. Por exemplo, se cabe recuperação para cooperativa médica, em tese, na hipótese de descumprimento pode ocorrer a convolação da recuperação judicial em falência.
Neste caso, como ficaria o sistema de liquidação das cooperativas e toda a rigidez do regime jurídico dos planos de saúde? Como conciliar a tutela das vidas dos usuários ao sistema de liquidação de ativos da Lei 11.101/2005, que está muito mais voltado à maximização do resultado financeiro? Além disso, como compatibilizar as competências da Agência Nacional de Saúde com aquelas exercidas pelo juízo recuperacional?
A visão sempre esteve muito mais próxima de uma falta de formatação da Lei 11.101/2005 aos agentes econômicos não empresariais do que eventual animosidade com o tema envolvendo recuperação judicial para tais sujeitos.
Manutenção do entendimento mesmo após a reforma da Lei 11.101
A nossa posição a respeito não mudou mesmo após a Lei 14.112/2020, pois vínhamos defendendo que a inserção feita pelo Senado na parte final do § 13, do artigo 6º, da Lei 11.101/2005, parecia-nos formalmente inconstitucional.
Do ponto de vista formal, o acréscimo realizado pelo Senado nos parecia que tinha ido muito além de uma simples emenda de redação, pois ele efetivamente acrescentou novo conteúdo até então inexistente na versão do projeto que foi aprovado pela Câmara e que previa: “não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial os contratos e obrigações decorrentes dos atos cooperativos praticados pelas sociedades cooperativas com seus cooperados, na forma do artigo 79 da Lei nº 5.764, de 16 de dezembro de 1971.”
Após a nada modesta emenda, o dispositivo passou a ter a seguinte redação: “Não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial os contratos e obrigações decorrentes dos atos cooperativos praticados pelas sociedades cooperativas com seus cooperados, na forma do artigo 79 da Lei nº 5.764, de 16 de dezembro de 1971, consequentemente, não se aplicando a vedação contida no inciso II do artig 2.o quando a sociedade operadora de plano de assistência à saúde for cooperativa médica“. (destaque para o que foi acrescentado).
Não foi difícil concluir, portanto, que, tendo ocorrido adição substancial ao conteúdo do texto que havia sido aprovado pela Câmara dos Deputados, havia ocorrido violação ao bicameralismo previsto no parágrafo único, do artigo 65, da Constituição, que determina que, “sendo o projeto emendado, voltará à Casa iniciadora”. O raciocínio a respeito da inconstitucionalidade formal de referido dispositivo foi desenvolvido com mais profundidade em texto publicado nesta ConJur, oportunidade em que também se tratou a respeito da sujeição do crédito decorrente de ato cooperativo aos efeitos da recuperação judicial.
Novo cenário jurídico após julgamentos do STF e do STJ
No entanto, este não foi o entendimento que prevaleceu perante o Supremo Tribunal Federal, que, em julgamento de ação direta de inconstitucionalidade (ADI 7.442), declarou válido o processo legislativo que levou à possibilidade de cooperativas médicas requererem recuperação judicial. Meses depois, foi a vez da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgando o REsp 2183710 e o REsp 2183714, igualmente reconhecer a legitimidade ativa das cooperativas médicas para o pedido de recuperação judicial.
Há alguns anos talvez fosse preciso discorrer um pouco mais a respeito da repercussão de julgados como os acima citados. Hoje, contudo, não há como não reconhecer a força exercida pelas decisões dos tribunais superiores, o impacto que elas causam no sistema jurídico e seus efeitos, de modo que, inegavelmente, o cenário jurídico mudou consideravelmente após as decisões proferidas pelo STF e pelo STJ.
Dito isso tudo, uma coisa hoje é certa: mesmo não sendo um agente econômico empresarial, cooperativa médica pode pedir recuperação judicial, valendo-se do mesmo arcabouço jurídico destinado aos empresários, que é a Lei 11.101/2005. O que, todavia, nos parece, é que isso não deve ficar restrito às cooperativas médicas.
Inevitável consequência: cabe RJ para demais cooperativas
Até o julgamento da ADI 7.442, o mais difícil de defender era justamente a constitucionalidade formal do parágrafo 13, do artigo 6º, da Lei 11.101/2005, acrescentado pela Lei 14.112/2020, dada o vício que ele parecia conter. Superada essa questão pelo Supremo, não haveria outro caminho possível ao STJ se não admitir a possibilidade de cooperativas médicas pedirem recuperação judicial, afinal é o que passou a estar previsto na legislação com a Lei 14.112/2020.
O questionamento decorrente disso é, se cabe recuperação judicial para cooperativa médica, por que não caberia para cooperativas de outras áreas?
Se adotarmos um racional isonômico é difícil não concluir que outras cooperativas além das médicas também podem acessar a recuperação judicial. Isso fica ainda mais patente quando são analisados os acórdãos dos julgados citados acima.
Muito do que o STJ disse quando reconheceu a legitimidade das cooperativas médicas para o pedido de recuperação judicial é válido para outras cooperativas, pois boa parte das razões de decidir não se restringem a elas. Do acórdão do REsp 2.183.714, destaca-se, por exemplo:
“No Estado Democrático de Direito, o princípio da legalidade, no âmbito do Direito Privado, assegura aos indivíduos e às entidades privadas, na ausência de uma proibição legal expressa, a possibilidade de exercerem atividades, celebrar ajustes e promover gestão negocial, respeitadas, as limitações impostas pela lei e pela ordem pública.
No caso, observa-se claramente do texto legal que as cooperativas médicas não estão nominalmente excluídas do regime recuperacional, visto que a exceção contida no art. 4º da Lei 5.764/1971, afasta tão-somente a possibilidade de decretação de falência.
[…]
E, vale destacar ante sua importância, as cooperativas médicas se tornaram, neste cenário, agentes econômicos organizados sob a forma de empresa. Este fato é inegável.
[…]
Vale dizer, a cooperativa médica, enquanto agente econômico organizado como empresa, não está imune às crises de nossa economia. Sofrem os mesmos influxos do mercado que atingem as empresas.”
Já o Supremo vai até além disso. No acórdão está claramente disposto que não houve inovação por parte do Senado, porque a Lei 11.101/2005 já autorizava recuperação judicial de cooperativas (com exceção das de crédito, em decorrência do inciso II, do artigo 2º, da Lei 11.101/2005):
“O relator do projeto, como eu disse, ao acolher a Emenda nº 62, qual foi sua fundamentação? Ele estava ajustando a redação do § 13 do art. 6º, para explicitar o que já havia sido aprovado das cooperativas médicas em relação às demais cooperativas. Isto é, sob a perspectiva do Senado, foi uma emenda que apenas explicitava algo já contido na legislação, e todas as informações apresentadas, na presente ação direta, por todos os requeridos, inclusive pela Câmara dos Deputados, todas elas, todas essas informações são convergentes a respeito desses fatos, ou seja, de que não houve nenhum desrespeito do Senado Federal ao que havia sido deliberado pela Câmara dos Deputados; ou seja, que não houve aqui algo aprovado no texto normativo não aprovado em ambas as Casas. E aqui eu repito: aprovado e reaprovado. Aprovado, num primeiro momento, por maioria simples, que é o quórum é exigido pela legislação para a lei ordinária, e depois reaprovado por maioria absoluta de ambas as Casas ao derrubar o veto do Presidente da República.
[…]
As cooperativas detêm natureza jurídica de sociedade simples, nos termos do art. 982 do Código Civil. O art. 1º da Lei 11.101/2005, por sua vez, disciplina a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. As cooperativas, pois, em linha de princípio, não se submetem ao regime da Lei 11.101/2005.
O art. 2º, II, da Lei 11.101/2005 exclui do âmbito da Lei 11.101/2005 uma série de sociedades empresariais e uma espécie de cooperativa, no caso, a cooperativa de crédito.
[…]
O que o Senado realizou foi especificar, exclusivamente, que as sociedades cooperativas operadoras de plano de assistência à saúde não estão contidas na limitação constante do art. 2º, II a Lei 11.101/2005. Nesse sentido, não alterou substancialmente o projeto aprovado pela Câmara dos Deputados, na medida em que, tão somente, referiu-se expressamente a um específico aspecto, prescindindo o retorno para deliberação para Casa iniciadora.
A Emenda apresentada pelo Senado Federal não ampliou ou delimitou o quanto já deliberado e aprovado pela Câmara dos Deputados. Especificou, tão somente, as decorrências lógicas ‘quando a sociedade operadora de plano de assistência à saúde for cooperativa médica’.
O Senado Federal apresentou a compreensão, que foi exposta durante a tramitação do projeto, de que se tratou de ajuste de redação para ‘explicitar que as cooperativas médicas estão sujeitas à Lei’. De fato, foi o que ocorreu. Ajustou o quanto deliberado pela Casa iniciadora com vistas a evitar interpretações limitadoras quanto a não aplicação da ‘vedação contida no inciso II do art. 2º quando a sociedade operadora de plano de assistência à saúde for cooperativa médica. A emenda apresentada pelo Senado Federal configura-se com a natureza de mero aprimoramento redacional, desanuviando qualquer leitura invesada que pudesse limitar a não aplicação da vedação contida no inciso II do art. 2º da Lei 11.101/2005 quando a sociedade operadora de plano de assistência à saúde for cooperativa médica.”
Sabe-se que é preciso ser econômico com as transcrições, mas os trechos acima são de sobremaneira importantes para deixar evidenciado o que acabou de ser dito.
O Supremo expressamente declarou que o acréscimo de texto realizado pelo Senado (que deixou explícito o cabimento de recuperação judicial para cooperativas médicas) não resultou em inovação, na medida em que a Lei 11.101/2005 já autorizava o uso de recuperação judicial por tais agentes, com exceção das cooperativas de crédito expressamente excluídas de seu sistema pelo inciso II, do artigo 2º.
Com isso fica superado o argumento de que não cabe recuperação judicial por cooperativas, por serem elas agentes econômicos não empresariais, já que o Supremo Tribunal Federal reconheceu que, mesmo antes da Lei 14.112/2005, já estava contida na Lei 11.101/2005 a permissão de seu uso pelas cooperativas (com exceção das de crédito).
Portanto, se cabe recuperação judicial para as cooperativas médicas (e já cabia mesmo antes do § 13, do artigo 6º, da Lei 11.101/2005!), igualmente cabe para as demais cooperativas.
[1] No artigo 1º que limita a incidência da Lei 11.101/2005 aos empresários e no inciso II, do artigo 2º, que veda recuperação judicial por sociedade operadora de plano de assistência à saúde.
Fonte: Conjur.