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23-10-2025 

Empresa em recuperação judicial não pode ser obrigada a garantir juízo trabalhista

Um dos problemas mais recorrentes na prática forense brasileira envolve empresas em recuperação judicial que enfrentam execuções trabalhistas. A questão central é aparentemente simples, mas gera controvérsia: o juiz do trabalho pode exigir que a empresa dê garantia (penhora ou depósito) para poder apresentar embargos à execução?

A resposta deveria ser óbvia, mas nem sempre é aplicada corretamente: não, o juízo trabalhista não pode exigir garantia de empresa em recuperação judicial. E a razão é lógica: se o juiz não tem competência para penhorar bens da recuperanda, como pode exigir garantia?

Paradoxo jurídico

A CLT exige, em seu artigo 884, que quem quer apresentar embargos à execução primeiro garanta o juízo (ofereça bens à penhora ou faça depósito em dinheiro). É uma regra que faz sentido para casos normais. O problema surge quando essa regra colide com a Lei de Recuperação Judicial (Lei 11.101/2005).

O artigo 6º dessa lei é claro: nenhum juiz pode penhorar, arrestar ou fazer qualquer tipo de constrição sobre bens de empresa em recuperação judicial. A razão é simples: se cada credor puder pegar um pedaço da empresa, ela quebra e não se recupera. Por isso, existe o “juízo universal” da recuperação — um único juiz controla tudo que envolve o patrimônio da empresa.

Esse princípio não é invenção brasileira. O direito alemão consagra a Verfahrenseinheit (unidade processual) no Insolvenzordnung (Código de Insolvência) [1]; nos Estados Unidos, o automatic stay do Bankruptcy Code (11 U.S.C. § 362) suspende automaticamente todas as ações contra o devedor em reorganização [2]; na França, o Code de Commerce estabelece o dessaisissement (despojamento do devedor) [3]. Todos esses sistemas reconhecem que a dispersão de execuções individuais mata a recuperação.

Se o juiz trabalhista não pode penhorar bens da recuperanda, exigir garantia do juízo é pedir algo que ele mesmo não poderia executar. É um paradoxo lógico.

Imagine a situação kafkiana: a empresa em recuperação judicial quer se defender apresentando embargos. O juiz diz: “só aceito se você der garantia”. Mas a lei proíbe qualquer garantia ou penhora sobre os bens da recuperanda. Então a empresa fica impossibilitada de se defender — o que viola os direitos constitucionais de ampla defesa e contraditório.

O que dizem os tribunais superiores

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é pacífica há mais de uma década. O STJ já decidiu que quando uma empresa está em recuperação judicial, a competência de outros juízos (incluindo a Justiça do Trabalho) se limita a calcular quanto é devido. Depois disso, o crédito tem que ser habilitado no juízo da recuperação. Ponto.

“O Superior Tribunal de Justiça já decidiu que no caso de deferimento da recuperação judicial a competência de outros juízos se limita à apuração dos respectivos créditos, sendo vedada a prática de qualquer ato que comprometa o patrimônio da empresa em recuperação.” (STJ, AgRg no CC 128267/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 2013)

O próprio Tribunal Superior do Trabalho reconheceu recentemente, em decisão de 2024, que não pode penhorar bens de empresa em recuperação:

“É cediço que a competência da Justiça do Trabalho nas hipóteses de falência ou recuperação judicial abrange toda a fase de conhecimento, contudo, na fase de execução, fica limitada à apuração de eventual valor devido, que deverá ser inscrito no quadro geral de credores (Juízo Universal). Desse modo, durante o processamento da falência ou recuperação judicial, não é possível a constrição de bens da empresa recuperanda ou falida.” (TST, Ag-AIRR 121215720165030142, 2024)

Lógica da hermenêutica constitucional

Como resolver essa colisão aparente entre duas normas? Aqui entra a sofisticação da hermenêutica constitucional moderna. Konrad Hesse, em sua clássica obra sobre a força normativa da Constituição (Die normative Kraft der Verfassung) [4], ensinou que quando dois princípios constitucionais entram em conflito, não se pode simplesmente sacrificar um em favor do outro. É preciso buscar a “concordância prática” (praktische Konkordanz) — uma solução que preserve ao máximo ambos os valores.

Robert Alexy, na sua teoria dos princípios [5], explica que diferentemente das regras (que funcionam no sistema “tudo ou nada”), os princípios constitucionais exigem ponderação (Abwägung). Não se trata de escolher entre proteger o trabalhador ou a empresa. Ambos são protegidos — mas de formas diferentes.

O trabalhador será pago. Seu crédito tem privilégio máximo no plano de recuperação (artigo 83, I, da Lei 11.101/2005). A diferença é que o pagamento será feito de forma organizada, no juízo competente, e não através de uma execução individual que pode quebrar toda a recuperação.

Conclusão lógica que muitos juízes ignoram

Se o TST reconhece que não pode penhorar, por que alguns juízes trabalhistas ainda exigem garantia? A resposta está na diferença entre dois conceitos que o TST já distinguiu: depósito recursal e garantia do juízo.

O TST já disse que a isenção de depósito recursal (prevista no artigo 899, §10, da CLT) não se aplica automaticamente à garantia do juízo na execução. Mas essa distinção, embora tecnicamente correta, ignora um fato crucial: ambos são formas de constrição patrimonial.

A diferença é que o depósito recursal serve para recorrer (fase de conhecimento), enquanto a garantia do juízo serve para defender-se na execução. Mas o resultado prático é o mesmo: retirar dinheiro ou bens da empresa em recuperação, o que a lei expressamente proíbe.

Como observa o processualista italiano Giuseppe Chiovenda [6], a competência funcional é absoluta e inderrogável. Não se sujeita à vontade das partes nem se prorroga por conexão. E sua violação gera nulidade absoluta. Se o juízo trabalhista não tem competência funcional para penhorar, também não tem para exigir garantia.

O que está em jogo

Não se trata de proteger empresas caloteiras. O trabalhador vai receber — a lei garante que o crédito trabalhista tem privilégio no plano de recuperação judicial (artigo 83, I, da Lei 11.101/2005). A questão é como ele vai receber: de forma organizada no juízo da recuperação, ou de forma caótica que pode quebrar a empresa e prejudicar todos os outros credores (incluindo outros trabalhadores)?

Exigir garantia do juízo de empresa em recuperação judicial é criar um privilégio ilegal para um credor específico, violando o princípio da isonomia entre credores que é a essência do sistema recuperacional. Como ensina o jurista americano Douglas G. Baird, professor da Universidade de Chicago e autor de Elements of Bankruptcy [7], a quebra da pari passu rule (regra da igualdade entre credores da mesma classe) destrói a lógica de qualquer sistema de insolvência.

O argumento que convence

Para operadores do direito que enfrentam essa situação, o argumento mais poderoso não é emocional (“a empresa está em dificuldade”), nem corporativista (“precisamos proteger a empresa”). O argumento é institucional e lógico:

Excelência, este juízo não pode exigir o que não tem competência para executar. A jurisprudência do STJ é pacífica: Vossa Excelência não pode penhorar bens da recuperanda. Se não pode penhorar, não pode exigir garantia. Exigir garantia seria praticar, por via transversa, o que a lei expressamente proíbe.

Esse argumento funciona porque não pede favor nem invoca dificuldades da empresa. Simplesmente aponta para uma impossibilidade jurídica: o juiz estaria exigindo algo que ele mesmo não poderia executar.

O acesso à Justiça, como ensinado por Mauro Cappelletti e Bryant Garth na obra seminal Access to Justice [8], não pode ser meramente formal. É preciso remover os obstáculos materiais que impedem o exercício efetivo da defesa. Exigir uma garantia impossível de ser prestada é criar exatamente esse tipo de obstáculo inconstitucional.

Dimensão comparada

O direito comparado reforça essa conclusão. No sistema francês de redressement judiciaire (recuperação judicial), o artigo L.622-21 do Code de Commerce estabelece que o jugement d’ouverture (sentença de abertura) suspende todas as ações individuais. Como explica a professora Marie-Hélène Monsèrié-Bon da Universidade de Paris [9], o sistema francês não admite exceções — nem mesmo para créditos trabalhistas privilegiados.

Na Alemanha, o § 89 do Insolvenzordnung é ainda mais rigoroso: estabelece o Vollstreckungsverbot (proibição de execução) absoluta durante o processo de insolvência. O professor alemão Karsten Schmidt, da Universidade de Bonn [10], ressalta que qualquer violação a essa regra invalida todo o processo.

Nos Estados Unidos, a Suprema Corte já decidiu que o automatic stay do § 362 do Bankruptcy Code é uma proteção fundamental que não pode ser contornada nem mesmo por cortes especializadas. No caso In re Robins [11], a Quarta Corte de Apelações destacou que permitir exceções ao stay destruiria todo o propósito da reorganização empresarial.

Conclusão

A exigência de garantia do juízo em face de empresa em recuperação judicial não é apenas ilegal — é logicamente impossível. Trata-se de uma contradição nos próprios termos: exigir que se faça aquilo que a lei proíbe fazer.

A solução não prejudica o trabalhador. Ele terá seu crédito reconhecido e incluído no plano de recuperação com a classificação privilegiada que a lei lhe garante. A diferença é que isso será feito de forma organizada, no juízo competente, preservando a possibilidade de a empresa se recuperar e continuar gerando empregos.

O Judiciário trabalhista, que já deu um passo importante ao reconhecer sua incompetência para penhorar bens de recuperandas, precisa dar o próximo passo lógico: reconhecer que também não pode exigir garantia do juízo.

Como ensinou Friedrich Müller em sua teoria da concretização normativa (Strukturierende Rechtslehre) [12], a norma jurídica não se confunde com o texto da lei. A norma é o resultado da interpretação sistemática, teleológica e constitucionalmente adequada. E uma interpretação adequada do artigo 884 da CLT deve levar em conta o sistema recuperacional como um todo.

Afinal, direito não é só sobre o que diz a lei. É sobre coerência, lógica e respeito ao sistema como um todo. E um sistema coerente não permite que se exija aquilo que não se pode executar.

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Referências

[1] ALEMANHA. Insolvenzordnung (InsO) – Código de Insolvência alemão. Deutschland, 1999.

[2] UNITED STATES. Bankruptcy Code. 11 U.S.C. § 362 (Automatic Stay). Washington: U.S. Government Publishing Office.

[3] FRANÇA. Code de Commerce. Articles L.622-21 et suivants (Redressement judiciaire). Paris: Légifrance.

[4] HESSE, Konrad. Die normative Kraft der Verfassung (A Força Normativa da Constituição). Tübingen: Mohr Siebeck, 1959.

[5] ALEXY, Robert. Theorie der Grundrechte (Teoria dos Direitos Fundamentais). Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1986.

[6] CHIOVENDA, Giuseppe. Istituzioni di Diritto Processuale Civile (Instituições de Direito Processual Civil). Napoli: Jovene, 1933.

[7] BAIRD, Douglas G. Elements of Bankruptcy. 7th ed. New York: Foundation Press, 2018.

[8] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Access to Justice: The Worldwide Movement to Make Rights Effective. Milan: Giuffrè, 1978.

[9] MONSÈRIÉ-BON, Marie-Hélène. Droit des entreprises en difficulté (Direito das Empresas em Dificuldade). 4e éd. Paris: LGDJ, 2020.

[10] SCHMIDT, Karsten. Insolvenzordnung (Código de Insolvência — Comentários). 19. Aufl. München: C.H. Beck, 2016.

[11] UNITED STATES. Court of Appeals, Fourth Circuit. In re A.H. Robins Company, Inc. 788 F.2d 994 (4th Cir. 1986).

[12] MÜLLER, Friedrich. Strukturierende Rechtslehre (Teoria Estruturante do Direito). Berlin: Duncker & Humblot, 1994.

 

Fonte: Conjur.

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