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15-08-2025
Criptoativos e insolvência empresarial: Desafios e soluções
Criptoativos na insolvência: Desafios, riscos e caminhos para um marco legal que una preservação da empresa e proteção dos credores.
1. Introdução
A transformação digital da economia global e a consolidação das tecnologias baseadas em blockchain alteraram de forma profunda a estrutura e a composição do patrimônio empresarial. Entre os fenômenos mais marcantes desse processo, destaca-se a expansão dos criptoativos e dos tokens, que deixaram de ser instrumentos restritos a nichos tecnológicos para se tornarem ativos amplamente utilizados em estratégias de investimento, operações comerciais e até como instrumentos de governança corporativa.
Essa nova realidade econômica projeta repercussões significativas sobre o Direito Empresarial e, de modo particular, sobre os regimes jurídicos de insolvência e reestruturação preventiva. No Brasil, a lei 11.101/05, ainda que reformada pela lei 14.112/20, não incorporou dispositivos específicos voltados à disciplina dos ativos digitais. A lacuna normativa exige que operadores do Direito lancem mão de interpretações analógicas e soluções casuísticas, frequentemente insuficientes para lidar com as singularidades técnicas e econômicas desses bens.
A ausência de parâmetros claros para a classificação, custódia e liquidação de criptoativos em contextos de crise empresarial não é um problema meramente procedimental, mas um desafio estrutural que impacta diretamente a efetividade do processo e a proteção dos credores. A volatilidade acentuada, a natureza descentralizada e a dependência de credenciais criptográficas - cujas perdas podem tornar o ativo irrecuperável - são características que tensionam os institutos tradicionais do Direito Empresarial e exigem soluções jurídicas inovadoras e coordenadas.
Nesse contexto, este estudo tem como objetivo examinar as "novas fronteiras" da insolvência empresarial a partir do tratamento jurídico dos criptoativos, abordando, de forma sistemática, três eixos interdependentes: (i) os desafios práticos para rastrear, custodiar, avaliar e liquidar ativos digitais no âmbito da recuperação judicial, extrajudicial e da falência; (ii) as implicações para a proteção de credores e para a credibilidade do mercado diante da dificuldade de execução desses bens; e (iii) a necessidade de evolução legislativa e jurisprudencial para adequar o sistema brasileiro às exigências desse novo cenário econômico.
A proposta é oferecer uma análise que una rigor técnico e reflexão crítica, dialogando com experiências internacionais e explorando alternativas normativas e operacionais capazes de harmonizar a preservação da empresa viável com a satisfação dos credores, de modo a reforçar a segurança jurídica e a estabilidade do ambiente de negócios frente ao avanço inevitável da economia digital.
2. Ativos digitais e sua inserção no contexto patrimonial
O crescimento exponencial dos criptoativos e dos tokens nas últimas duas décadas deslocou o eixo tradicional do patrimônio empresarial, impondo ao Direito a necessidade de repensar categorias jurídicas consolidadas. Esses ativos, assentados em tecnologia blockchain, caracterizam-se por sua natureza eminentemente digital, descentralizada e criptograficamente protegida, o que lhes confere autonomia funcional e dificulta a aplicação direta das classificações clássicas de bens previstas no CC brasileiro (UHDRE, 2021).
No plano internacional, observa-se que a ausência de consenso quanto à natureza jurídica dos ativos digitais tem repercussões diretas na sua qualificação patrimonial. Há quem defenda sua assimilação a bens móveis incorpóreos, passíveis de penhora e circulação por atos inter vivos, enquanto outros os equiparam a ativos financeiros sujeitos a regimes regulatórios específicos (FOX; GREEN, 2019). Essa indefinição conceitual não é meramente acadêmica: ela afeta a forma de contabilização, a possibilidade de oferecimento em garantia e o tratamento a ser conferido em processos de insolvência e reestruturação empresarial (KERRIGAN, 2023).
Ademais, a discussão jurídica sobre a natureza dos criptoativos transcende o aspecto classificatório, alcançando implicações tributárias, cambiais e societárias. Ao serem incorporados ao patrimônio de empresas - especialmente de startups e companhias com atuação no setor de tecnologia -, tais ativos impactam diretamente a estrutura de capital e a avaliação econômica das organizações, influenciando operações societárias, fusões e aquisições (BRUMMER, 2019). Essa intersecção entre Direito Empresarial e Direito Digital exige uma abordagem interdisciplinar, capaz de harmonizar conceitos jurídicos com a dinâmica tecnológica e mercadológica que permeia esses bens (KOLLER; LEHMANN, 2025).
A experiência estrangeira evidencia que a definição legal de ativos digitais não é tarefa trivial, pois envolve ponderações entre segurança jurídica, inovação tecnológica e proteção de credores. Regulamentos recentes, como o MiCA - Markets in Crypto-Assets Regulation na União Europeia, buscam estabelecer um regime uniforme, ainda que não isento de críticas, especialmente quanto à compatibilidade com sistemas jurídicos nacionais e à suficiência para lidar com casos de insolvência (ZETZSCHE; WOXHOLTH, 2025). No Brasil, a lacuna normativa persiste, deixando ao intérprete o desafio de adaptar institutos tradicionais a um fenômeno que escapa às lógicas jurídicas convencionais (BACAL; HARTMANN; RODRIGUES, 2022).
Nesse cenário, a inserção dos ativos digitais no contexto patrimonial empresarial não é apenas uma questão de reconhecimento formal, mas de adaptação sistêmica. A qualificação jurídica desses bens precisa dialogar com sua funcionalidade econômica, de modo a permitir que sejam adequadamente integrados a processos de recuperação judicial ou extrajudicial, sem comprometer a coerência do sistema e a proteção dos interesses envolvidos (GHIRARDI, 2021).
2.1. Natureza jurídica dos criptoativos e tokens
A definição da natureza jurídica dos criptoativos e tokens constitui um dos pontos mais controvertidos no debate contemporâneo sobre Direito Digital e Direito Empresarial. A controvérsia decorre do fato de tais ativos possuírem uma natureza híbrida: são representações digitais de valor que podem funcionar como meio de troca, reserva de valor, ativo de investimento ou instrumento de governança em ecossistemas descentralizados (UHDRE, 2024). Essa multiplicidade funcional desafia a taxonomia tradicional do Direito, que opera com categorias jurídicas rígidas, como bens corpóreos e incorpóreos, ou valores mobiliários e mercadorias.
Parte da doutrina nacional sustenta que os criptoativos, por não possuírem materialidade física, devem ser classificados como bens móveis incorpóreos, com tratamento análogo ao de direitos de crédito ou participações societárias (GHIRARDI, 2021). Outra corrente, influenciada pela experiência europeia e pelos avanços regulatórios do MiCA - Markets in Crypto-Assets Regulation, defende que determinados criptoativos - especialmente aqueles com lastro ou função de captação pública - devem ser enquadrados como instrumentos financeiros, sujeitos a regulação setorial mais intensa (ZETZSCHE; WOXHOLTH, 2025).
No cenário internacional, a obra coordenada por Kerrigan (2023) evidencia que a classificação jurídica depende não apenas da função do ativo, mas também do arcabouço regulatório vigente em cada jurisdição, o que gera assimetrias significativas na aplicação de normas de insolvência e execução. Brummer (2019) complementa essa visão ao apontar que, em alguns sistemas, a ausência de legislação específica leva a soluções jurisprudenciais ad hoc, muitas vezes inconsistentes, comprometendo a previsibilidade para investidores e credores.
A qualificação também impacta diretamente a possibilidade de constrição e liquidação desses bens no contexto de reestruturação preventiva ou falência. Fox e Green (2019) argumentam que, mesmo quando considerados bens móveis, os criptoativos demandam regras especiais para sua apreensão, em razão do controle técnico derivado das private keys. Nesse sentido, Koller e Lehmann (2025) ressaltam que, sem um regime jurídico claro, a execução contra tais ativos pode ser ineficaz, uma vez que a transferência de propriedade exige a colaboração ativa do titular ou a quebra de barreiras criptográficas.
No Brasil, a lei 14.478/22 - que dispõe sobre prestadores de serviços de ativos virtuais - não enfrentou de maneira conclusiva a questão da natureza jurídica, limitando-se a estabelecer parâmetros de supervisão e registro. Assim, a interpretação sobre sua qualificação continua sujeita à hermenêutica dos tribunais, que tendem a recorrer a analogias com institutos tradicionais, ainda que esses não abarquem a complexidade técnica e econômica dos ativos digitais (BACAL; HARTMANN; RODRIGUES, 2022).
Diante desse quadro, é possível afirmar que a determinação da natureza jurídica dos criptoativos e tokens não é mero exercício classificatório, mas um elemento estruturante para a sua inserção no ordenamento jurídico, influenciando desde operações empresariais ordinárias até a eficácia dos mecanismos de preservação e satisfação de créditos na insolvência (HABIB, 2024).
2.2. Divergências doutrinárias nacionais e internacionais
A ausência de consenso sobre a natureza e o enquadramento jurídico dos criptoativos resulta em divergências substanciais, tanto no plano interno quanto no comparado. Essas divergências não são meramente teóricas: refletem distintas concepções sobre função econômica, grau de intervenção estatal e proteção jurídica dos agentes envolvidos.
No cenário brasileiro, parte da doutrina empresarial e de insolvência sustenta que os criptoativos, por sua alta volatilidade e ausência de lastro físico, devem receber um tratamento jurídico restritivo no contexto da recuperação judicial, priorizando a proteção de credores por meio de liquidação célere e conversão imediata em moeda corrente (GHID, 2022). Essa linha, de viés mais conservador, considera que a permanência dos ativos digitais no patrimônio do devedor durante o processo pode agravar o risco sistêmico, dada a instabilidade de preços.
Em contraposição, outros autores advogam por um regime de preservação desses ativos até o momento mais oportuno de sua realização, valorizando o potencial de recuperação econômica e evitando a venda forçada em cenários de baixa (UHDRE, 2021). Essa visão aproxima-se de experiências internacionais nas quais os criptoativos são mantidos sob custódia especializada, aguardando condições de mercado mais favoráveis para alienação - prática observada, por exemplo, nos Estados Unidos e em alguns países da União Europeia (KERRIGAN, 2023).
No campo comparado, as divergências são ainda mais evidentes. Enquanto o Markets in Crypto-Assets Regulation europeu propõe um enquadramento uniforme e regulado, visando conferir estabilidade e previsibilidade ao mercado (ZETZSCHE; WOXHOLTH, 2025), sistemas como o norte-americano mantêm abordagem fragmentada, com múltiplas autoridades reguladoras - SEC, CFTC, FinCEN - aplicando interpretações potencialmente conflitantes, o que pode gerar insegurança jurídica para investidores e empresas (BRUMMER, 2019).
Além disso, há tensão conceitual quanto à possibilidade de aplicação direta das categorias de propriedade tradicionais a ativos digitais. Fox e Green (2019) defendem que a titularidade de criptoativos se aproxima mais de um direito de controle criptográfico do que da propriedade civil clássica, exigindo adaptação de conceitos jurídicos fundamentais. Em sentido diverso, Bacal, Hartmann e Rodrigues (2022) sustentam que, com ajustes técnicos e probatórios, é possível enquadrar esses bens dentro das categorias patrimoniais existentes, evitando a criação de regimes jurídicos autônomos que possam fragmentar o sistema.
Por fim, observa-se que as divergências também se manifestam na ponderação entre inovação e segurança jurídica. Autores como Habib (2024) enfatizam a importância de um marco regulatório flexível, que permita a evolução tecnológica sem engessamentos prematuros, enquanto Koller e Lehmann (2025) defendem que a previsibilidade normativa deve prevalecer, mesmo que à custa de uma regulação mais rígida, para proteger credores e manter a confiança no sistema de insolvência.
2.3. Reflexos da classificação na recuperação judicial e extrajudicial
A definição da natureza jurídica dos criptoativos e tokens não se limita a um debate conceitual: ela possui impacto direto e imediato sobre a forma como esses ativos serão tratados em procedimentos de recuperação judicial e extrajudicial. O enquadramento jurídico influencia, por exemplo, a possibilidade de oferecimento em garantia, a ordem de classificação dos créditos e a forma de liquidação ou preservação desses bens no plano de soerguimento empresarial (BACAL; HARTMANN; RODRIGUES, 2022).
Quando considerados bens móveis incorpóreos, os criptoativos podem ser alienados judicialmente, seguindo-se os procedimentos previstos para bens dessa natureza. Todavia, a execução dessa alienação demanda soluções técnicas específicas, uma vez que a transferência de titularidade depende do acesso e da movimentação segura das private keys (FOX; GREEN, 2019). A ausência de domínio técnico por parte do administrador judicial ou a falta de cooperação do devedor pode comprometer a efetividade do processo, tornando inviável a realização do ativo.
Por outro lado, se enquadrados como ativos financeiros ou valores mobiliários, os criptoativos estariam sujeitos a regimes regulatórios mais estritos, o que poderia ampliar a segurança para credores e investidores, mas também gerar sobreposição de competências e maior burocracia (KERRIGAN, 2023). Essa classificação influenciaria diretamente a liquidez do ativo, já que sua negociação ficaria condicionada a regras específicas de mercado e à eventual supervisão por órgãos reguladores, como a Comissão de Valores Mobiliários.
No plano extrajudicial, a qualificação dos criptoativos também condiciona a possibilidade de utilizá-los como meio de pagamento ou como instrumento de novação de dívidas. Experiências internacionais demonstram que, quando devidamente custodiados por terceiros de confiança, esses ativos podem servir como moeda de troca para acordos entre devedor e credores, desde que haja mecanismos transparentes de avaliação e controle de volatilidade (KOLLER; LEHMANN, 2025). Contudo, em contextos de instabilidade de preços, a aceitação desses ativos como forma de pagamento pode ser rejeitada por credores avessos ao risco, dificultando a homologação de planos extrajudiciais (BRUMMER, 2019).
Outro reflexo importante decorre da volatilidade intrínseca desses ativos. Uma avaliação patrimonial realizada no início do processo de recuperação pode, em poucos meses, tornar-se desatualizada, afetando a viabilidade do plano aprovado e exigindo aditivos ou revisões judiciais (ZETZSCHE; WOXHOLTH, 2025). Nesse ponto, a ausência de previsão legal para readequações dinâmicas do valor de ativos digitais no contexto da recuperação judicial representa um desafio significativo para a preservação da empresa e para a segurança jurídica dos credores.
Dessa forma, a classificação jurídica dos criptoativos não apenas determina seu enquadramento teórico, mas também afeta diretamente as estratégias processuais, a confiança dos credores e a efetividade das medidas de reestruturação empresarial. Qualquer lacuna ou imprecisão nesse enquadramento repercute de forma concreta sobre a viabilidade e o sucesso dos processos de recuperação e insolvência que envolvam tais bens (HABIB, 2024).
Fonte: Migalhas.