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14-08-2025 

Criação de subclasses no plano de recuperação judicial: critérios objetivos e limitaçõesc

A recuperação judicial, como instrumento jurídico de superação da crise econômico-financeira da empresa, encontra no plano de recuperação judicial seu principal mecanismo de reorganização. O plano aprovado pelos credores reunidos em assembleia geral é o documento que formaliza as condições de pagamento dos créditos e de reorganização empresarial, servindo como base para a tentativa de preservação da empresa, manutenção dos empregos e satisfação dos credores.

Criação da subclasse de credores no plano de recuperação

Nesse contexto, após o surgimento da Lei 11.101/2005, como explica Manoel Justino [1], passou-se a discutir, na doutrina e jurisprudência, a possibilidade de diferenciar o tratamento entre credores de uma mesma classe que possuam interesses diferentes um dos outros e também se encontrem em uma posição diferente dos demais em relação à empresa em recuperação.

A partir dessa preocupação com a heterogeneidade de interesses dentro de uma mesma classe, especialmente a classe III (quirografários), surge a figura do chamado “credor parceiro”, definido como aquele que fornece bens ou serviços a preços mais acessíveis ou concede prazos mais longos de pagamento, contribuindo para o soerguimento da empresa. Essa construção doutrinária permitia a criação de subclasse de credores com o fim de estabelecer o tratamento igualitário a credores com interesses homogêneos, dentro de uma classe de credores que reúna credores com interesses distintos.

A 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça [2], em julgamento paradigmático (REsp 1.634.844/SP), reconheceu a validade da criação de subclasse de credores quirografários dentro do plano de recuperação judicial. Tal decisão consagrou o entendimento até então desenvolvido pela doutrina, no sentido de que a autonomia privada dos credores, aliada à função social da empresa, permitiria diferenciações dentro de uma mesma classe, desde que obedecidos requisitos de transparência, isonomia e respeito à coletividade.

A Corte Superior foi expressa ao consignar que a criação de subclasse de credores deveria obedecer a três requisitos: (1) critérios objetivos justificados no PRJ; (2) abrangência de credores com interesses homogêneos; e (3) estipulação de descontos que não causem verdadeira anulação de direitos de eventuais credores isolados.

A subclasse de credores após a reforma

Com a reforma da Lei 11.101/2005, promovida pela Lei 14.112/2020, o legislador positivou essa construção jurisprudencial e doutrinária, ao prever, no parágrafo único do artigo 67 [3], a possibilidade de criação de subclasse de credores parceiros. Segundo o dispositivo, tais credores são aqueles que continuam a fornecer bens ou serviços essenciais à manutenção das atividades da empresa em recuperação, e que, por isso, podem receber tratamento diferenciado no plano.

Contudo, a própria literalidade do dispositivo impõe limites relevantes a essa criação de subclasses. Como observa Marcelo Sacramone [4], se o legislador pretendesse autorizar a criação de subclasses com base em critérios genéricos, o teria feito expressamente. Não o fez. Por isso, a interpretação do parágrafo único do artigo 67 deve ser restritiva, limitando-se a casos de fornecimento contínuo de bens ou serviços essenciais. Ainda, segundo Sacramone, permitir que o devedor estabeleça livremente tais subclasses comprometeria a vontade coletiva dos credores, afetando inclusive a apuração do quórum de votação e tornando possível a manipulação dos resultados.

Da mesma forma, Fabio Ulhoa [5] adverte que deve haver relação direta entre a importância estratégica do credor e o tratamento benéfico conferido no plano. E, mais do que isso, todos os demais credores que estiverem em situação similar devem ter igual oportunidade de adesão e de recebimento dos mesmos benefícios. Em outras palavras, a criação da subclasse não pode se fundar em critérios subjetivos, tampouco restringir o acesso apenas a determinados credores por vontade exclusiva do devedor.

Limitação à subclasse de credores no plano de recuperação judicial

Um dos limites à criação da subclasse diz respeito à vedação de se exigir a concordância com o plano como condição para que o credor seja considerado parceiro. Como adverte Sacramone [6], essa exigência configura abuso de direito, pois subverte o processo deliberativo e força os credores a aprovarem o plano para terem acesso a condições mais vantajosas. A adesão à subclasse deve ser voluntária e desvinculada da aprovação do plano, sob pena de comprometimento da legitimidade do processo deliberativo.

Também é vedado exigir do credor eventual renúncia ao direito de litigar contra o devedor como condição para sua inclusão na subclasse [7]. Tal exigência, além de desproporcional, comprometeria o direito constitucional de ação e poderia configurar prática coercitiva, incompatível com os princípios norteadores do processo recuperacional.

Outro limite relevante é a impossibilidade de a adesão à subclasse depender de critérios subjetivos ou discricionários, especialmente quando tais critérios atribuem exclusivamente ao devedor a prerrogativa de aceitar ou recusar a inclusão de determinado credor na condição de parceiro. Atribuir ao devedor a prerrogativa exclusiva de selecionar quem será ou não parceiro, sem qualquer parâmetro objetivo, configura condição potestativa e, portanto, nula, na medida em que permite ao devedor manipular tanto o tratamento a ser conferido aos créditos quanto o próprio quórum de aprovação do plano, afetando a regularidade do processo deliberativo.

A jurisprudência tem reconhecido que a criação de subclasses com benefícios diferenciados só se sustenta quando acompanhada de critérios claros, impessoais e verificáveis [8]. Caso contrário, abre-se espaço para negociações individualizadas e discricionárias, com favorecimento de determinados credores em detrimento de outros da mesma classe, circunstância que compromete o princípio da par conditio creditorum.

A cláusula do plano, portanto, não pode induzir o credor a erro, motivo pelo qual os critérios para o enquadramento na subclasse devem ser objetivos e previamente definidos, de modo a permitir que qualquer credor saiba, desde a deliberação do plano, se fará jus ou não ao tratamento diferenciado.

Como bem resume Manoel Justino [9], o plano deve incluir disposições específicas e detalhadas, permitindo que qualquer credor possa se candidatar à condição de parceiro, desde que ofereça colaboração compatível com o benefício recebido. A ausência de critérios claros e verificáveis pode invalidar a proposta, por comprometer a igualdade de tratamento.

De um lado, o credor deve se sujeitar ao ônus e risco de financiar a atividade e soerguimento da empresa em recuperação, e de outro, o credor deve ser beneficiado em detrimento aos demais que não estão dispostos a suportar o mesmo risco que ele.

Assim, observa-se que a criação de subclasse de credores, embora permitida pela lei, está condicionada a critérios rigorosos de objetividade, isonomia e proporcionalidade. A subclasse deve refletir, portanto, uma contrapartida concreta à colaboração prestada pelos credores parceiros e não um instrumento de favorecimento indevido ou de manipulação do processo de votação. Trata-se, em última análise, de garantir a efetividade do processo recuperacional, por meio da preservação da empresa e da observância da vontade legítima da coletividade de credores.

Conclusão

Conclui-se, portanto, que o tratamento diferenciado entre os credores, tratando-se aqui, da criação de subclasse de credores no plano de recuperação judicial, somente se justifica quando fundado em parâmetros impessoais e específicos, vinculados à efetiva colaboração do credor para a superação da crise da empresa. Cláusulas que delegam ao devedor a escolha discricionária dos beneficiários, ou que condicionam o tratamento favorecido a exigências abusivas, como o voto favorável ao plano ou a renúncia ao direito de ação, são incompatíveis com os princípios que regem o processo recuperacional.

As limitações jurídicas aqui tratadas desafiam o necessário controle de legalidade por parte do Poder Judiciário, que deve zelar pela preservação da par conditio creditorum, pela proteção da vontade coletiva dos credores e pela integridade do sistema recuperacional como um todo. Em última análise, o papel da jurisdição não é o de substituir a vontade dos credores, mas o de assegurar que essa vontade se manifeste dentro dos limites da legalidade e da boa-fé.

 

Referências

[1] BEZERRA FILHO, Manoel Justino, Lei de recuperação de empresas e falências. 15.a edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p. 321.

[2] REsp n. 1.634.844/SP, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, julgado em 12/3/2019, DJe de 15/3/2019.

[3] Art. 67. Parágrafo único. O plano de recuperação judicial poderá prever tratamento diferenciado aos créditos sujeitos à recuperação judicial pertencentes a fornecedores de bens ou serviços que continuarem a provê-los normalmente após o pedido de recuperação judicial, desde que tais bens ou serviços sejam necessários para a manutenção das atividades e que o tratamento diferenciado seja adequado e razoável no que concerne à relação comercial futura.

[4] SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência / 5. ed. – São Paulo : SaraivaJur, 2024. p. 353.

[5] COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à Lei de Falências e de Recuperação de Empresas. 14ª ed., São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 268.

[6] SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência / 5. ed. – São Paulo : SaraivaJur, 2024. 355.

[7] “ao que se entende, tal disposição viola o direito constitucional de ação […], por suprimir dos credores toda e qualquer possibilidade de discussão judicial de eventuais ilegalidades. A respeito, a cláusula pode dificultar eventuais discussões sobre injustificadas negativas à adesão às condições dos colaboradores.” (TJSP; Agravo Interno Cível 2374242-80.2024.8.26.0000; Relator: Rui Cascaldi; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível – 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; Data do Julgamento: 30/4/2025; Data de Registro: 30/04/2025)

[8] “A despeito da possibilidade, em abstrato, de criação de subcategorias de credores da mesma classe, como anteriormente visto, as mencionadas disposições no caso concreto carecem de qualquer critério objetivo de pagamento, prevendo, em relação a cada credor específico, negociações individuais, o que tem o condão de privilegiar, individualmente, parte deles, em detrimento dos demais, tanto da mesma subcategoria, quanto da mesma classe, o que não pode, bem por isso, prosperar, máxime quando o plano não indica, de modo claro e concreto, como tal vantagem creditória ajudaria no soerguimento da empresa e no sucesso da recuperação.” (TJ-SP;  Agravo de Instrumento 2118997-68.2024.8.26.0000; Relator: Rui Cascaldi; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Taubaté – 4ª Vara Cível; data do julgamento: 02/09/2024; data de registro: 02/09/2024)

[9] BEZERRA FILHO, Manoel Justino, Lei de recuperação de empresas e falências. 15.a edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p. 322.

 

Fonte: Conjur.

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