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13-10-2025 

Arrendamento rural e recuperação judicial: Onde termina a essencialidade?

A essencialidade de imóveis arrendados em recuperações judiciais de produtores rurais revela um impasse: preservar a empresa em crise sem violar o direito de propriedade.

Um dos temas mais recorrentes nas recuperações judiciais de produtores rurais diz respeito à alegação de essencialidade de imóveis objeto de arrendamento ou parceria rural. A questão, embora aparentemente técnica, toca em um ponto nevrálgico do direito recuperacional: até onde a lei pode flexibilizar direitos de terceiros em nome da preservação da empresa em crise?

Não se perde de vista a importância dos arrendamentos e parcerias rurais para muitos produtores brasileiros. Segundo dados do Censo Agropecuário de 2017, cerca de 19,2% dos estabelecimentos agropecuários no Brasil utilizavam terras arrendadas ou em parceria. Em números absolutos, isso representa aproximadamente 1 milhão de estabelecimentos que dependem dessas modalidades para sua atividade1.

No estado de Santa Catarina, por exemplo, cerca de 57,10% da área plantada com arroz na safra 2023/2024 era arrendada ou cultivada em sistema de parceria2.

Esse cenário evidencia que os contratos de arrendamento ou parceria não são exceção; são parte integral da estrutura produtiva agrícola, impactando custos, decisões de investimento e até a estrutura de risco do produtor. É nesse contexto que emerge a polêmica sobre essencialidade de bens arrendados ou explorados em parceria: até que ponto a lei recuperacional (lei 11.101/05) pode proteger bens essenciais que não pertencem juridicamente ao devedor?

A lei 11.101/05, em seu art. 49, § 3º, é clara: os créditos de proprietários fiduciários, arrendadores mercantis, promitentes vendedores ou titulares de posições equivalentes não se submetem aos efeitos da recuperação judicial. Há uma exceção, bem delimitada: se o bem for de capital, objeto de alienação fiduciária, e for essencial ao desenvolvimento da atividade da empresa recuperanda, pode haver suspensão temporária de sua retirada ou venda durante o período de stay previsto no art. 6º, § 4º.

Esta compreensão, todavia, aplica-se exclusivamente para a hipótese em que a recuperanda é a devedora fiduciante, afinal, o § 3º do art. 49 da lei 11.101/05 trata dos créditos, devidos pela recuperanda, que não se submetem à recuperação judicial.

Os tribunais pátrios têm consolidado entendimento de que a manutenção da declaração de essencialidade em relação a bens de terceiros pode implicar proteção jurídica indevida e desvirtuar o propósito do processo recuperacional. O instituto da essencialidade tem caráter transitório e destina-se exclusivamente a resguardar determinados bens do devedor que sejam indispensáveis à continuidade da empresa em recuperação judicial, não podendo ser estendido a terceiros que não integram a lide3.

A jurisprudência predominante do STJ também reforça esse posicionamento, assentando que a análise da essencialidade deve limitar-se aos bens integrantes do patrimônio da empresa recuperanda, excluindo-se imóveis pertencentes a terceiros4.

Assim, qualquer tentativa de estender a proteção legal a bens de terceiros extrapola os limites da lei 11.101/05 e compromete tanto a segurança jurídica quanto a efetividade do regime de recuperação judicial.

Sob a ótica civilista, o raciocínio é igualmente claro. O art. 1.228 do CC assegura ao proprietário o direito de reaver o bem de quem injustamente o possua. De forma complementar, o Estatuto da Terra (arts. 95 e 96) estabelece que arrendamento e parceria rural conferem ao produtor apenas o uso e gozo da terra por prazo determinado e sob condições específicas, sem jamais transferir a titularidade. A Constituição Federal reforça esse limite: garante o direito de propriedade (art. 5º, XXII) e condiciona-o à função social (art. 5º, XXIII), mas não autoriza a supressão do direito do titular para atender exclusivamente às necessidades da empresa em recuperação.

No cotidiano do setor agropecuário, essa distinção faz diferença concreta. Imagine um produtor rural em recuperação que arrenda três fazendas para plantar soja. É comum que sustente judicialmente que esses imóveis são "essenciais" à produção. No entanto, admitir tal alegação como base para proteção legal equivaleria a blindar bens alheios sem previsão normativa, impedindo que o proprietário recupere a posse ao fim do contrato ou em caso de inadimplemento. O resultado prático seria a insegurança jurídica no campo, com proprietários relutando em firmar novos contratos de arrendamento, temendo ficarem presos a uma recuperação judicial que não lhes diz respeito.

É preciso lembrar que a finalidade da LREF, delineada no art. 47, é preservar a empresa em crise, garantindo a continuidade de sua atividade econômica. Mas essa preservação não pode ocorrer a qualquer custo, nem se converter em supressão de direitos fundamentais. O equilíbrio reside no respeito aos limites legais: a atividade econômica só prospera quando há previsibilidade e confiança nas regras do jogo.

Portanto, mesmo que o imóvel arrendado ou explorado em parceria rural seja essencial à produção, não se enquadra como bem de capital essencial para fins recuperacionais. A lei é clara: a proteção da essencialidade só alcança bens que integram o patrimônio do devedor. Expandir esse conceito seria romper a coerência do sistema, violar o direito de propriedade e gerar o efeito inverso ao desejado - retração do crédito e do acesso à terra.

___________

1 BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Estrutura fundiária. Censo Agropecuário 2017. Rio de Janeiro: IBGE, 2019. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/apps/atlasrural/pdfs/02_00_Texto.pdf. Acesso em: 2 out. 2025.

2 BAVARESCO, Marcionize. Arrendamento de áreas é o principal componente do custo de produção do arroz em Santa Catarina. Revista Cultivar, 25 set. 2024. Disponível em: https://revistacultivar.com.br/noticias/arrendamento-de-areas-e-o-principal-componente-do-custo-de-producao-do-arroz-em-santa-catarina. Acesso em: 2 out. 2025.

3 Nesse sentido: [...] Ainda que o Juízo Universal deva avaliar a essencialidade de bens para a viabilização do soerguimento da empresa em recuperação judicial, no caso de bem imóvel locado (bem de titularidade de terceiro), em que pese seja utilizado para o desenvolvimento da atividade empresarial, tem-se entendido que a ação de despejo (que visa à retomada do bem) não se sujeita aos efeitos da recuperação, pois não se trata de cobrança de valores (dívida ilíquida), a qual deve ser processada no juízo próprio, nos termos do § 1º do art. 6º da Lei n. 11 .101/05.3. De acordo com o entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça, seguido por esta egrégia Corte Estadual, a ação de despejo movida pelo locador (proprietário do bem) em face da empresa Recuperanda não se sujeita à competência do Juízo Universal, pois prevalece o direito de propriedade (de patrimônio não pertencente à Recuperanda) sobre o princípio da preservação da empresa em recuperação. 4. Recurso de agravo de instrumento conhecido, e, no mérito, provido. (TJ-PR 0023963-16.2023.8 .16.0000 Curitiba, Relator.: Mario Luiz Ramidoff, Data de Julgamento: 18/09/2023, 17ª Câmara Cível, Data de Publicação: 20/9/2023).

4 Cita-se o julgado: AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. ESSENCIALIDADE DO BEM. COMPETÊNCIA DO JUÍZO DA RECUPERAÇÃO. BEM DADO EM GARANTIA POR TERCEIRO. IMÓVEL NÃO ABRANGIDO. SÚMULAS N. 480 E 581 DO STJ. ACÓRDÃO RECORRIDO EM HARMONIA COM A JURISPRUDÊNCIA DESTA CORTE SUPERIOR. SÚMULA 83/STJ. AGRAVO DESPROVIDO. 1. Apesar de ter a lei de regência excluído expressamente dos efeitos da recuperação judicial o crédito de titular da posição de proprietário fiduciário de bens imóveis ou móveis, acentuou que os "bens de capital", objeto de garantia fiduciária, essenciais ao desenvolvimento da atividade empresarial, permaneceriam na posse da recuperanda durante o stay period. 2. Incumbe ao Juízo em que se processa a recuperação judicial analisar a melhor forma de pagamento do crédito extraconcursal, deliberar sobre os atos expropriatórios, sopesar a essencialidade dos bens de propriedade da empresa passíveis de constrição, bem como a solidez do fluxo de caixa da empresa em recuperação. 3. A constrição dos bens dos sócios da empresa em recuperação judicial, que não estejam abrangidos para o cumprimento do plano de recuperação, não invade a esfera de competência do juízo cível, conforme prevê a Súmula n. 480/STJ. 4. O Tribunal a quo manteve a constrição do imóvel ao argumento de que o bem foi dado em garantia por terceiro, não estando, portanto, abrangido pelos efeitos da recuperação, assim como asseverou que o imóvel não tem nenhuma relação de essencialidade com a atividade da empresa, já que se trata de apartamento duplex, de alto padrão e localizado em outro município. Acórdão que está em harmonia com a jurisprudência desta Corte. Incidência da Súmula 83/STJ. 5. Agravo interno desprovido. (AgInt no AREsp 1384309/SP, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 1/7/2019, DJe 6/8/2019)

 

 

Fonte: Migalhas.

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