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26-08-2025 

A recuperação judicial das recém-criadas sociedades de produtores rurais

Criação de sociedade empresária nova impacta nas esferas da legitimação e da sujeição dos créditos.

É de conhecimento notório que o setor agrícola é o maior responsável pelos casos de recuperação judicial no país e, somente no último ano (2024), houve um acréscimo de 138% em relação ao ano anterior, segundo dados do SERASA, os quais dizem respeito ao produtor primário, sem contar as demais empresas que atuam na cadeia do agronegócio.

Também não é segredo que a grande maioria desses produtores atua com base na informalidade e sem métodos estruturados de gestão administrativa e planejamento da atividade. O preço das commodities varia, o dólar não se estabiliza, os juros disparam, o clima prejudica a produção da safra, as políticas públicas de renegociação das dívidas rurais não se concretizam e a crise financeira se instala abruptamente.

Sobra, então, para o sistema repressivo de tratamento de crise resolver um problema econômico crônico e amplamente conhecido em todo o Brasil.

Como é cediço, a lei 11.101/05 atribui a legitimidade para requerer a recuperação judicial ao devedor que, além de atender a todos os requisitos previstos nos incisos do art. 48, "exerça regularmente suas atividades há mais de 2 (dois) anos".

O devedor, de acordo com a legislação concursal, pode ser uma sociedade anônima, uma sociedade empresária limitada, um empresário individual ou, ainda, um produtor rural, desde que tenha realizado seu registro comercial como empresário.

Considera-se regular o exercício da atividade quando o empresário está registrado no Registro Público de Empresas Mercantis, mantém escrituração contábil e levanta demonstrações financeiras. A prova da regularidade, como regra, se faz com a apresentação de certidão expedida pela Junta Comercial, da qual se pode extrair a data de inscrição do empresário no Registro de Empresas.

Situação distinta, no entanto, verifica-se em relação à comprovação de regularidade do empresário rural, diante das particularidades da atividade.

De acordo com o art. 967 do CC, o empresário, em geral, deve obrigatoriamente se inscrever no Registro Público de Empresas Mercantis da sua respectiva sede antes do início de sua atividade, a fim de exercê-la regularmente. Todavia, o produtor rural tem a faculdade de fazer seu registro, não sendo obrigatório para o exercício da atividade rural.

Uma vez registrado, este será equiparado ao empresário para todos os efeitos (art. 971 do CC).

Assim, para fins da proposição de recuperação judicial, o STJ firmou entendimento acerca da interpretação que deve ser oferecida ao requisito temporal previsto no art. 48 da LREF: é facultado ao produtor rural que exerça sua atividade de forma empresarial há mais de dois anos requerer a recuperação judicial, desde que esteja inscrito na Junta Comercial quando formalizar o pedido, independentemente do tempo de registro - isto é, não há exigência legal de que esse registro tenha ocorrido dois anos antes da formalização do pedido (Tema repetitivo 1.145).

Tudo isso já é amplamente difundido no sistema de insolvência e nos casos existentes.

Ocorre, todavia, que muitos dos pedidos de recuperação judicial estão sendo ajuizados por sociedades limitadas ou sociedades anônimas constituídas especificamente com esse propósito, em detrimento do mero registro comercial como empresário individual em seu nome.

O regime societário escolhido repercute no processo recuperacional, precipuamente nas esferas da (i) legitimação e da (ii) sujeição dos créditos.

Acerca da legitimação, na forma do art. 48 da LREF, poderá requerer recuperação judicial o devedor que, no momento do pedido, exerça regularmente suas atividades há mais de 2 (dois) anos.

Portanto, a sociedade empresária não possui tempo de atividade suficientemente apto para legitimá-la a ingressar no regime recuperacional, pois esbarra no seu exíguo interregno de tempo existente entre a sua constituição e o ajuizamento do pedido.

Já no que concerne à sujeição dos créditos, verifica-se que todas as dívidas decorrentes da atividade rural estão relacionadas ao CPF dos produtores rurais enquanto estes ainda exerciam a atividade rural como pessoas físicas.

Pelos documentos que usualmente são acostados, não se vislumbra a existência de dívidas vinculadas à recém-criada sociedade.

Não se desconhece que a LREF permite que, no âmbito da atividade rural, o tempo de atividade de 2 (dois) anos possa ser comprovado por meio do LCDPR - Livro Caixa Digital do Produtor Rural ou por qualquer outro meio legal de registro, servindo até mesmo a DIRPF - Declaração de Imposto de Renda da Pessoa Física.

E, uma vez evidenciado o tempo de atuação e a consequente legitimação, o produtor rural que se registrar comercialmente poderá requerer a recuperação judicial, sujeitando ao procedimento até mesmo as dívidas contraídas anteriormente ao registro.

Mas, para além do processo recuperacional, trata-se de uma questão eminentemente societária.

Necessário é, dessa forma, diferenciar o registro comercial como empresário individual da constituição de uma sociedade limitada unipessoal.

O empresário individual é pessoa física que exerce a atividade empresarial em nome próprio, respondendo com o seu patrimônio pessoal pelos riscos do negócio, não sendo possível distinguir entre a personalidade da pessoa natural e a da empresa, sendo sua natureza de responsabilidade ilimitada.

Ainda que haja a criação de um "CNPJ", este se dá somente para fins administrativos fiscais, não ensejando a criação de uma personalidade jurídica propriamente dita e de uma nova massa patrimonial.

E é justamente esse conceito que permite a sujeição das dívidas pré-existentes ao registro comercial do produtor rural ao processo recuperacional quando adotado o regime de empresário individual, pois a responsabilidade segue sendo ilimitada.

Ou seja, dívidas que eram da pessoa física são automaticamente transferidas ao "CNPJ" e vice-versa, unificando o patrimônio em um só.

Em um cenário prático, credores da atividade rural poderiam penhorar bens pessoais do empresário rural em execuções individuais, já que o patrimônio, assim como as dívidas, se confunde.

Pode-se afirmar que há confusão patrimonial deliberada de ativos e de passivos entre a pessoa física e o empresário individual, o qual, ao fim e ao cabo, é a pessoa natural registrada comercialmente como empresário.

Situação diversa, todavia, ocorre com a sociedade limitada unipessoal.

Nesta há a constituição de uma nova massa patrimonial, com personalidade jurídica própria, sendo sujeito de direitos e obrigações perante terceiros, com patrimônio próprio, o que confere proteção patrimonial.

A responsabilidade dos sócios é limitada ao valor de suas quotas, apenas respondendo todos os sócios solidariamente para fins de integralização do capital social.

Com a criação de uma sociedade limitada por parte dos requerentes, não há mera continuidade da atividade rural com registro comercial, mas sim a criação de uma nova personalidade jurídica que, contabilmente, não comporta a transferência automática das dívidas e dos ativos da pessoa física, pois, como dito, possui autonomia patrimonial.

A título ilustrativo, apresenta-se abaixo quadro sintético com o que se abordou até então:

IMPACTO JURÍDICO

EMPRESÁRIO INDIVIDUAL

SOCIEDADE LIMITADA

PERSONALIDADE JURÍDICA

Não possui personalidade jurídica

Possui personalidade jurídica e constituição de massa patrimonial individualizada

COMUNICAÇÃO PATRIMONIAL

Há comunicação entre as dívidas e os bens da atividade empresarial rural e os da pessoa natural.

Dívidas e bens da sociedade são separados dos bens pessoais. Inexiste, em regra, confusão patrimonial.

RECUPERAÇÃO JUDICIAL

Sujeitam-se ao concurso as dívidas da atividade rural enquanto atuava pessoa física

A nova sociedade não possui dívidas registradas contabilmente, pois estão atreladas à esfera patrimonial da pessoa física.

FALÊNCIA

A decretação da falência implicaria a extensão automática dos seus efeitos para a pessoa física, em razão de haver responsabilidade ilimitada (art. 81 da LREF).

Em caso de quebra, como os bens utilizados na atividade rural não estão vinculados à sociedade, seria necessária a presença dos requisitos do art. 50 do CC para desconsiderar a personalidade jurídica e responsabilizar pessoalmente o sócio.

Ao que parece, a intenção dos recuperandos com a adoção do regime societário é transferir/sujeitar as dívidas da atuação como pessoa física para a recém-criada sociedade e manter o patrimônio resguardado na pessoa física.

Isso lhes traria, a um só tempo, o bônus da proteção patrimonial e da sujeição das dívidas ao concurso de credores.

Mas a separação que possibilita o patrimônio seguir vinculado à pessoa física é a mesma que não permite que as dívidas sejam ficticiamente repassadas à sociedade.

Indo além, essa medida teria repercussão direta em eventual convolação da recuperação judicial em falência, pois, como os bens estão vinculados à pessoa física, seria necessário estarem presentes os requisitos do art. 50 do CC para desconsideração da personalidade jurídica, na forma do art. 82-A da LREF, sob o risco de não se arrecadar nenhum bem para a Massa Falida.

Já para os empresários individuais, a decretação da quebra acarretaria a falência automática dos sócios ilimitadamente responsáveis, sujeitando ao procedimento falimentar todos os bens, sejam pessoais, sejam aqueles utilizados na atividade rural (art. 81 da LREF).

Em suma, se a criação de uma sociedade limitada com personalidade jurídica própria não implica a transferência automática do patrimônio vinculado à atividade rural, logicamente também não acarreta a assunção das dívidas do empresário rural por essa nova empresa.

Trata-se, eminentemente, de uma limitação técnico-contábil. Não há regra contábil que autorize a realocação automática de passivos e ativos sem a devida justificativa contratual que subsidie as transações.

Isso sem mencionar a ausência de efeitos dessas transferências em relação a bens ofertados em garantia nos contratos firmados pelos sócios, sem a devida anuência do credor.

O contratante originário é o sócio, não a recém-criada sociedade.

O credor, no momento da concessão do crédito ao empresário individual ou ao produtor rural pessoa física, não leva em conta a possibilidade de os bens que garantem os contratos serem automaticamente transferidos para uma pessoa jurídica.

Há casos em que os próprios credores vêm alegando ilegitimidade passiva para serem alvo de determinações oriundas do juízo recuperacional dessas sociedades.

A justificativa, dotada de respaldo, é a de que não possuem relação jurídica originária com essas empresas, já que se tratam de partes estranhas aos contratos inicialmente firmados com os seus sócios.

Os produtores, ao fim e ao cabo, são meros sócios da sociedade que postula a recuperação judicial.

Permitir a sujeição das dívidas contraídas pela pessoa física ao concurso de credores, nessas condições, seria possibilitar a recuperação judicial do sócio pessoa natural pela via oblíqua.

Repisa-se que não se está dizendo que não é permitido que produtores rurais requeiram a recuperação judicial sob o regime de sociedade limitada. Esta, no entanto, precisará estar há mais de 2 (dois) anos em operação e possuir as dívidas e os ativos utilizados na atividade vinculados à sua esfera patrimonial.

Por fim, cumpre referir que é viável, antes de indeferir a petição inicial e extinguir o pedido, oportunizar que a sociedade limitada unipessoal seja transformada para o regime jurídico de empresário individual, procedimento administrativo que inclusive é previsto pelas Juntas Comerciais do país.

 

 

Fonte: Migalhas.

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