NOTÍCIAS
23-10-2025
A (in)validade da cláusula de renúncia da essencialidade na recuperação judicial
A cláusula de renúncia à essencialidade afronta a ordem pública e a função social da empresa, sendo inválida na recuperação judicial por violar direito indisponível à preservação da atividade.
Desde a Antiguidade, os contratos se erigem como instrumentos fundamentais à convivência e ao progresso da sociedade. São eles que permitem a circulação da riqueza, fomentam a confiança entre os agentes econômicos e estruturam a própria noção de crédito - base sobre a qual se ergue o desenvolvimento. A palavra empenhada e a obrigação cumprida sempre foram sinônimos de estabilidade.
Contudo, a história também demonstra que a economia não caminha em linha reta. Ciclos de expansão e retração desafiam o equilíbrio entre o pacto firmado e a realidade possível. Nesse cenário, a recuperação judicial surge como um mecanismo de proteção não apenas à empresa, mas à própria engrenagem social e econômica que dela depende. E é justamente nesse ponto que o direito se vê diante de uma encruzilhada: deve prevalecer a força dos contratos ou a função social da preservação da atividade?
Essa tensão se manifesta de forma particularmente sensível quando se analisa a cláusula de renúncia à essencialidade dos bens, usualmente inserida em contratos de adesão de alienação fiduciária. Trata-se de disposição padrão, elaborada com a finalidade de resguardar o credor fiduciário diante de eventual crise econômico-financeira do devedor, pela qual este declara antecipadamente que determinado bem não será considerado essencial à sua atividade.
Aparentemente inofensiva, tal cláusula busca blindar o credor fiduciário diante da crise do devedor. Mas o que parece prudência contratual revela-se, sob a ótica jurídica, uma afronta à ordem pública. Inicialmente, tal previsão colide frontalmente com o art. 424 do CC, segundo o qual "nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio". Em outras palavras, ainda que redigida sob o manto da autonomia da vontade, a cláusula que impõe ao devedor a renúncia prévia a um direito legalmente protegido viola a própria essência do equilíbrio contratual.
Além disso, sob a ótica das diretrizes do Direito da Empresa em Crise, o art. 6º, § 7º-A da lei 11.101/051 não confere às partes a liberdade de afastar a proteção legal que impede a retirada de bens de capital essenciais durante o stay period.
Trata-se de direito indisponível, voltado à preservação da empresa e à regularidade do procedimento recuperacional - valores que transcendem os interesses particulares das partes. Utilizando-se das afiadas palavras do desembargador J. B. Franco de Godoi do TJ/SP, no julgamento do agravo de instrumento 2075762-85.2023.8.26.0000: "O processo de recuperação tem matiz coletiva e social, o que está acima dos direitos disponíveis e individuais dos credores. Neste aspecto, a vontade das partes não pode derrogar a imposição legal".
Ademais, a própria definição da essencialidade do bem compete exclusivamente ao juiz da recuperação judicial, conforme o art. 6º, § 7º-B, da lei 11.101/2005 (TJ/GO 54089251020248090051, relator.: BRENO CAIADO - (DESEMBARGADOR), 11ª Câmara Cível, Data de Publicação: 15/8/24).
Como é de se esperar, nos últimos anos, os tribunais têm se debruçado sobre a dialeticidade que marca o direito empresarial contemporâneo. De um lado, está a rigidez contratual, sustentada pelo ideal de segurança jurídica e pela confiança que estrutura as relações econômicas. De outro, a flexibilidade imposta pela crise, que exige do Direito uma postura interventiva, capaz de assegurar a continuidade da atividade produtiva e, com ela, a preservação de empregos, a arrecadação de tributos e a própria circulação de riquezas. Cita-se, a título exemplificativo, o enfrentamento da matéria:
"AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. BENS DE CAPITAL. ESSENCIALIDADE. Insurgência contra decisão suspensiva da consolidação da propriedade fiduciária dos imóveis em que instalada a sede da recuperanda. Agravante que é credor titular da posição de proprietário fiduciário do imóvel objeto da matrícula 102.782 do 1º CRI de Sorocaba. Prova da essencialidade do imóvel que abriga a sede da recuperanda. Cláusula de renúncia da essencialidade do bem. Nulidade de pleno direito. Proteção que decorre de lei. Matéria de ordem pública. Decisão mantida. Recurso desprovido. (TJ-SP - Agravo de Instrumento: 2267955-30.2023 .8.26.0000 Sorocaba, Relator.: J.B. Paula Lima, Data de Julgamento: 12/03/2024, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 12/03/2024)"
Importante frisar, contudo, que a análise da essencialidade não se dá de forma genérica. Desse modo, ao analisar a questão, deverá o juízo singular fundamentar de forma suficiente as circunstâncias que evidenciam a essencialidade, caso a caso. A análise não pode ser realizada de maneira genérica, cabendo ao juízo da recuperação judicial verificar, de forma individualizada, mediante prova documental, quais bens são efetivamente indispensáveis à continuidade das atividades empresariais.
De igual modo, incumbe ao magistrado elencar aqueles que se revelam fundamentais para o processo de soerguimento da crise financeira, deliberando, ainda, acerca da natureza concursal ou extraconcursal do crédito, uma vez que, dentre os bens considerados essenciais, poderão existir móveis que ainda não integram o patrimônio da recuperanda (TJ/MT - AI: 10245716920228110000, relator.: MARILSEN ANDRADE ADDARIO, Data de Julgamento: 19/4/23, Segunda Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 26/4/23).
Essa verificação deve levar em consideração, entre outros fatores, a titularidade do bem, a demonstração fática da essencialidade e o risco concreto de expropriação ou constrição.
A ausência dessa fundamentação criteriosa pode desprestigiar o sistema de garantias, gerando insegurança jurídica e imprevisibilidade nas relações de crédito - efeitos nocivos tanto para o ambiente negocial quanto para a própria efetividade do instituto recuperacional.
Isso posto, em última análise, a cláusula de renúncia à essencialidade dos bens confronta dois valores igualmente caros ao Direito: a força obrigatória dos contratos e a função social da empresa. Quando o pacto ameaça a própria subsistência da atividade produtiva, o ordenamento jurídico sabiamente opta pela preservação do todo - e não pela rigidez do texto contratual.
Porque, ao fim e ao cabo, não há crédito sem empresa, nem contrato sem economia viva.
___________________
1 § 7º-A. O disposto nos incisos I, II e III do caput deste artigo não se aplica aos créditos referidos nos §§ 3º e 4º do art. 49 desta Lei, admitida, todavia, a competência do juízo da recuperação judicial para determinar a suspensão dos atos de constrição que recaiam sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º deste artigo, a qual será implementada mediante a cooperação jurisdicional, na forma do art. 69 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), observado o disposto no art. 805 do referido Código.(Incluído pela Lei nº 14.112, de 2020)
Fonte: Migalhas.
(48) 3433.8525/3433.8982