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27-11-2025 

A (In)aplicabilidade da lei 11.101/05 às empresas estatais: Uma análise crítica da decisão do STF no RE 1.249.945/MG (Tema 1.101)

1. Introdução: A crise econômica bate à porta das estatais

As empresas estatais, sejam elas empresas públicas ou sociedades de economia mista, não estão imunes aos riscos do mercado. Tal como as suas congêneres privadas, estão sujeitas a crises econômico-financeiras decorrentes de má gestão, oscilações de mercado, passivos vultosos ou incapacidade de competição. Um exemplo recente e notório é a situação da empresa brasileira de Correios e Telégrafos (Correios) que, diante de um déficit financeiro significativo, avalia a necessidade de vultosos empréstimos para garantir sua operação, evidenciando que a participação estatal no capital social não é, por si só, uma garantia de solvência perpétua1.

O ordenamento jurídico brasileiro, contudo, sempre tratou essas entidades de forma ambivalente. A CF/88 segmentou a atuação estatal, distinguindo, grosso modo, as empresas estatais prestadoras de serviços públicos (muitas vezes em regime de monopólio ou exclusividade, como companhias de saneamento ou transporte urbano) daquelas que exploram atividade econômica em sentido estrito, atuando em regime de concorrência com a iniciativa privada (como o Banco do Brasil ou a Petrobras).

Essa dualidade funcional levanta uma questão central no Direito Empresarial e Administrativo: se uma estatal, que compete no mercado e age sob a lógica privada, poderia fazer uso dos mesmos instrumentos legais que seus concorrentes em caso de insolvência? Ou seja, seria cabível a aplicação da lei 11.101/05 (LREF - lei de recuperação judicial, extrajudicial e falência) a essas entidades? Por décadas, a doutrina e a jurisprudência oscilaram. Recentemente, o STF foi instado a pacificar a matéria no julgamento do RE 1.249.945/MG (Tema 1.101), cuja decisão será o cerne deste artigo.

2. O Estado empresário: A tensão entre o regime de Direito Público e o de Direito Privado

A intervenção do Estado no domínio econômico é uma faculdade prevista no art. 173, caput, da CF/88, mas de natureza excepcional, justificada apenas quando "necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo". Para exercer tal mister, o Estado cria pessoas jurídicas de Direito Privado - as empresas públicas e sociedades de economia mista.

Ocorre que o § 1º do mesmo art. 173 impõe a essas entidades um regime jurídico híbrido, fonte de toda a tensão dogmática. Especificamente, o inciso II do § 1º determina "a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários". Este dispositivo é o principal argumento dos que defendem a aplicação da LREF às estatais, sob o argumento da isonomia e da livre concorrência (art. 170, IV, CF/88). Se a estatal compete, deve competir em igualdade de condições, suportando os mesmos riscos, inclusive o da falência.

Em contrapartida, essas entidades não se desvinculam totalmente de sua origem pública. Sua criação depende de autorização legislativa específica (art. 37, XIX, CF/88) e sua finalidade, mesmo quando lucrativa, está atrelada ao "relevante interesse coletivo" que justificou sua fundação. Elas estão sujeitas ao controle dos Tribunais de Contas e, em muitos aspectos, aos princípios da Administração Pública.

Essa tensão gera a dúvida central: quando uma estatal entra em crise, qual regime deve prevalecer? O regime de Direito Privado, que aponta para a recuperação judicial, extrajudicial ou a falência como solução para a insolvência; ou o regime de Direito Público, que invoca o interesse coletivo e a supremacia do interesse público para afastar as soluções de mercado?

3. A oscilação da legislação e a pacificação da matéria pelo STF (Tema 1.101)

A incerteza sobre o tema não é nova e foi alimentada por uma verdadeira oscilação legislativa, que por sua vez fomentou três correntes doutrinárias distintas.

3.1. Do art. 242 da lei das S.A. à LREF

Historicamente, o debate foi pautado pelo antigo art. 242 da lei 6.404/76 (lei das sociedades por ações), que previa expressamente: "As companhias de economia mista não estão sujeitas à falência [...]". Este dispositivo era alvo de duras críticas dos comercialistas, que o viam como um privilégio odioso e inconstitucional frente ao já mencionado art. 173, § 1º, II, da CF/88.

Em 2001, a lei 10.303/01, que reformou a LSA, finalmente revogou o art. 242. Esse movimento legislativo foi comemorado por parte da doutrina como o alinhamento do sistema à Constituição, passando-se a admitir a falência das sociedades de economia mista.

Contudo, a aparente pacificação durou pouco. Em 2005, adveio a nova lei de recuperação e falência (lei 11.101/05), que, em seu art. 2º, inciso I, estabeleceu categoricamente:

"Art. 2º. Esta Lei não se aplica a:

I - empresa pública e sociedade de economia mista;"

O legislador, portanto, reintroduziu a vedação2, agora de forma ainda mais ampla (incluindo empresas públicas) e no diploma central de insolvência. A controvérsia foi restabelecida, agora focada na (in)constitucionalidade deste novo dispositivo.

3.2. As três correntes doutrinárias

Diante desse cenário, a doutrina se cindiu, conforme bem sintetizado no voto do ministro Flávio Dino no RE 1.249.9453:

Primeira corrente (inconstitucionalidade total): Sustentava a inconstitucionalidade do art. 2º, I, da LRF, por afronta direta ao art. 173, § 1º, II, da CF/88. Sob essa ótica, a submissão ao regime privado é plena, incluindo o regime de insolvência, como corolário da livre concorrência.
Segunda corrente (interpretação conforme): Defendia uma interpretação conforme a Constituição. O veto da LREF seria legítimo apenas para as estatais prestadoras de serviço público em regime não concorrencial (que se submetem ao regime de precatórios). Contudo, o veto seria inconstitucional para as estatais que exploram atividade econômica em regime de concorrência, pois estas deveriam, sim, submeter-se à LREF.
Terceira corrente (constitucionalidade plena): Afirmava a plena constitucionalidade do art. 2º, I, da LRF. O fundamento central é dúplice: (a) o "relevante interesse coletivo" (art. 173, caput) que justifica a criação da estatal é superior aos interesses privados dos credores; e (b) a aplicação do princípio do paralelismo das formas (ou simetria das formas), segundo o qual, se a entidade foi criada por autorização legislativa (art. 37, XIX), somente por lei pode ser extinta, e não por uma decisão judicial falimentar.
3.3. A decisão do STF no RE 1.249.945 (Tema 1.101)

No caso concreto, a ESURB - Empresa Municipal de Serviços, Obras e Urbanização de Montes Claros/MG, em grave crise econômica, pleiteou sua recuperação judicial, defendendo a tese da segunda corrente (interpretação conforme).

O STF, contudo, ao julgar o mérito do RE 1.249.945, com repercussão geral reconhecida (Tema 1.101), rechaçou a pretensão e adotou integralmente os fundamentos da terceira corrente. A Corte fixou a seguinte tese:

"É constitucional o art. 2º, I, da Lei nº 11.101/2005 quanto à inaplicabilidade do regime falimentar às empresas públicas e sociedades de economia mista, ainda que desempenhem atividades em regime de concorrência com a iniciativa privada, em razão do eminente interesse público/coletivo na sua criação e da necessidade de observância do princípio do paralelismo das formas."

Em seu voto, o relator, ministro Flávio Dino, destacou que a própria existência de uma estatal, mesmo concorrencial, pressupõe um interesse público subjacente que não pode ser ignorado pelo "Estado-Juiz". O argumento decisivo, no entanto, foi o do paralelismo das formas: a falência, ao decretar a extinção da pessoa jurídica, usurparia a competência do Poder Legislativo para autorizar tal extinção. O STF citou o exemplo da RFFSA - Rede Ferroviária Federal S/A, que, ao ser extinta, teve seu destino (incluindo o pagamento de credores) disciplinado por uma lei específica (lei 11.483/07).

4. Conclusão: Pacificação e o limbo das estatais que exploram atividade econômica em regime de concorrência

A decisão do STF no Tema 1.101 traz, por um lado, segurança jurídica, pacificando décadas de debate acadêmico4. A regra agora é clara: nenhuma empresa estatal, independente de prestar serviço público ou explorar atividade econômica em regime de concorrência, pode se socorrer dos instrumentos previstos na lei 11.101/05. Contudo, essa pacificação gera um problema para as estatais que atuam em regime de concorrência, expondo um vácuo normativo preocupante.

Para as estatais prestadoras de serviço público em regime não concorrencial, a decisão do STF já era, de certo modo, esperada. A própria Suprema Corte, em diversas oportunidades (como na ADPF 1.2115), já havia firmado o entendimento de que tais entidades - desde que não distribuam lucros e não atuem em concorrência - pagam seus débitos judiciais pelo regime de precatórios (art. 100, CF/88), tal como a Fazenda Pública. Para elas, a LREF nunca foi uma alternativa viável.

O verdadeiro problema surge para as estatais que atuam em regime de concorrência. A jurisprudência do STF é firme em negar a elas o regime de precatórios, justamente por força do art. 173, § 1º, II.

Cria-se, assim, um "limbo" jurídico:

A estatal que explora atividade econômica em regime de concorrência e que esteja em crise econômico-financeira não pode se valer do regime de precatórios (pois compete com o mercado);
E, agora, por decisão do Tema 1.101, ela não pode se valer da recuperação judicial ou falência (pois é uma estatal).
Ao vedar que tais empresas se socorram das ferramentas de reestruturação da LREF, o STF limita drasticamente suas hipóteses de socorro. Diante de uma crise de insolvência, qual alternativa resta a tais estatais?

A resposta parece ser única: a estatal terá que recorrer ao tesouro (ente público ao qual está vinculada). Dessa forma, a decisão do STF, embora tecnicamente fundada no princípio do paralelismo das formas, acaba por gerar uma distorção econômica: o risco do insucesso empresarial, que no setor privado é absorvido pelos credores e pelo próprio empresário, é, no caso das estatais que exploram atividade econômica em regime de concorrência, invariavelmente socializado. Ao fim e ao cabo, a conta pela ineficiência ou crise de mercado é paga por todos os contribuintes.

__________________________

1 Conforme reportagem da CNN Brasil ("Correios avaliam empréstimo de R$ 20 bi para salvar caixa até fim de 2026"), a estatal enfrenta graves dificuldades financeiras, necessitando de intervenção para manter sua liquidez. Reportagem disponível aqui. Acesso em 22/10/2025.

2 MEYER, José Alexandre Corrêa. A Sociedade de Economia Mista e Sua Exclusão da Nova Lei de Falências. In: SANTOS, Paulo Penalva (Coord.). A nova lei de falências e de recuperação de empresas: Lei nº 11.101/05. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

3 Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 1.249.945/MG. Voto do Relator Min. Flávio Dino. Julgamento concluído em 20/10/2025.

4 Acabou por prevalecer a corrente defendida por JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 12ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 143. Assim, foram afastadas as teses que entendiam inconstitucional o inciso I do art. 2º da LREF, como a defendida por SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. 3. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2022, pp. 72/75.

5 Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 1.211/PB. Relator: Min. Flávio Dino. Julgado em 16/06/2025. A decisão reafirmou a aplicação de precatórios à CODATA (Companhia de Processamento de Dados da Paraíba), por ser prestadora de serviço público essencial, sem fins lucrativos e sem concorrência.

 

 

Fonte: Migalhas.

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