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27-11-2025
A extinção das obrigações do falido na jurisprudência do TJ/SP
Tribunal reconhece a extinção das obrigações do falido, mas exige quitação de tributos e cumprimento rigoroso de requisitos legais, limitando o efeito do fresh start.
1. Introdução: Escopo e metodologia
Este trabalho apresenta levantamento de julgados do TJ/SP sobre a extinção das obrigações do falido, com foco especial na interpretação do art. 158 da lei 11.101/05 (LRF). A pesquisa utilizou, no campo “Ementa” do site do TJS/P, os termos “158” e “11.101”. Na “Classe”, foram selecionados Agravos de Instrumento e Apelações Cíveis. No “Assunto”, Recuperação Judicial e Falência (4993). O levantamento foi concluído em 24 de novembro de 2025, resultando em uma base amostral de 56 acórdãos.
A norma principal sobre o tema é o art. 158 da LRF:
Art. 158. Extingue as obrigações do falido: I - o pagamento de todos os créditos; II - o pagamento, após realizado todo o ativo, de mais de 25% (vinte e cinco por cento) dos créditos quirografários, facultado ao falido o depósito da quantia necessária para atingir a referida porcentagem se para isso não tiver sido suficiente a integral liquidação do ativo; V - o decurso do prazo de 3 (três) anos, contado da decretação da falência, ressalvada a utilização dos bens arrecadados anteriormente, que serão destinados à liquidação para a satisfação dos credores habilitados ou com pedido de reserva realizado; VI - o encerramento da falência nos termos dos arts. 114-A ou 156 desta lei.
As decisões foram categorizadas em três grupos temáticos a partir de suas teses centrais:
- Grupo I: Requisitos e procedimentos para a extinção das obrigações (13 acórdãos - 23% da amostra): Reúne julgados que tratam dos requisitos materiais e processuais sobre o tema, incluindo a distinção entre encerramento da falência e extinção das obrigações do falido, e a necessidade de observância de ritos específicos como o do art. 114-A.
- Grupo II: Ressalva do crédito tributário (14 acórdãos – 25% da amostra): Consolida o entendimento de que a extinção das obrigações do falido (art. 158, LRF) não atinge os débitos fiscais, que exigem quitação, conforme o art. 191 do CTN.
- Grupo III: O impacto da lei 14.112/20 (29 acórdãos - 52% da amostra): Analisa a aplicação temporal das novas regras, incluindo o prazo decadencial para habilitação de crédito e as distintas regras de transição para as hipóteses de extinção de obrigações do falido.
2. Análise
O Grupo I estabelece as premissas fundamentais da análise: a diferença entre o encerramento do processo falimentar e a extinção das obrigações do falido, bem como a necessidade de cumprimento dos requisitos legais.
O encerramento é um marco processual que, por si só, não reabilita o devedor. Conforme o AI 2063346-95.2017.8.26.0000 (rel. des. Hamid Bdine, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 18/10/2017), mesmo com a falência encerrada, “não há notícia de que as obrigações da falida tenham sido declaradas extintas por sentença, nos termos dos arts. 158 e 159 da lei 11.101/05”. A extinção é um benefício que depende do cumprimento de requisitos legais e de um procedimento próprio, como reforçado na apelação cível 0000519-91.2007.8.26.0272 (rel. des. Alexandre Lazzarini, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 19/12/2019), que a classifica como um “requerimento específico, embasado nos arts. 158 e 159 da LREF”.
A jurisprudência tende a ser rigorosa quanto à comprovação dos requisitos do art. 158. No AI 994.09.039214-0 (rel. des. Piva Rodrigues, 9ª Câmara de Direito Privado, j. 26/1/2010), o pedido foi negado porque o ativo ainda não havia sido totalmente realizado, impedindo a verificação do requisito de pagamento de mais de 50% dos créditos quirografários (antigo inciso II do art. 158). Já no AI 649.258-4/4-00 (rel. des. Elliot Akel, Câmara Especial de Falências e Recuperações Judiciais, j. 15/12/2009), o Tribunal aplicou a regra de forma literal, deferindo o pedido desde que o falido complementasse o valor necessário para atingir o percentual legal.
A quitação de tributos, tema do Grupo II, é tratada como condição sine qua non. No julgamento da apelação 0000868-47.2015.8.26.0100 (rel. des. Ana Maria Baldy, 6ª Câmara de Direito Privado, j. 4/4/2019), o Tribunal foi taxativo: “O Código Tributário Nacional é taxativo ao dispor, em seu art. 191, que ‘a extinção das obrigações do falido requer prova de quitação de todos os tributos’”. A ausência dessa prova leva à improcedência do pedido.
Ademais, a extinção das obrigações do falido depende da observância do procedimento do art. 159 da LRF, com publicação de edital e prazo para oposição dos credores, garantindo o contraditório. O AI 994.09.039214-0 (rel. des. Piva Rodrigues, 9ª Câmara de Direito Privado, j. 26/1/2010) reforçou essa exigência, afirmando que o órgão jurisdicional está “desautorizado a concedê-lo sem observar o contraditório”.
Por fim, sobre os acórdãos do Grupo III, a reforma da LRF em 2020 trouxe complexidade à matéria. O TJSP desenvolveu uma interpretação dual para as regras de transição.
Para a nova hipótese de extinção pelo decurso de 3 anos da quebra (art. 158, V), o Tribunal aplica a regra de irretroatividade prevista no art. 5º, § 1º, IV, da própria lei. Na apelação cível 0021023-27.2022.8.26.0100 (rel. des. Sérgio Shimura, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 10/9/2024), decidiu-se que a norma “só se aplica às falências decretadas a partir do início de vigência da lei, ou seja, 23/1/2021”.
Por outro lado, para a extinção decorrente do encerramento da falência (art. 158, VI), a aplicação tem sido imediata aos processos em curso, por se tratar de norma processual.
A inovação de maior impacto foi o prazo decadencial de 3 anos para a habilitação de crédito (art. 10, § 10). O TJ/SP pacificou que, para falências decretadas antes da reforma, o prazo começou a contar da vigência da nova lei (24/01/2021), esgotando-se em 24/1/2024. No entanto, em uma distinção técnica importante, o Tribunal tem decidido que o prazo se aplica apenas a pedidos de habilitação (inclusão de novos créditos), mas não a impugnações (discussão sobre créditos já listados). No agravo de instrumento 2325737-58.2024.8.26.0000 (rel. des. Ricardo Negrão, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 14/2/2025), o relator acolheu o parecer do Ministério Público, que ponderou: “o dispositivo da lei se refere às habilitações de crédito e não às impugnações de crédito e, em se tratando de norma que dispõe sobre extinção de direitos, deve ser interpretada restritivamente”.
3. Discussão
Os dados revelam que o caminho do fresh start ainda não está pavimentado. A principal barreira é a tributária. O TJ/SP tende a reformar sentenças que estendem a extinção aos créditos fiscais. A apelação cível 0739802-29.1998.8.26.0100 (rel. des. Antonio Carlos Santoro Filho, 1ª Câmara de Direito Privado, j. 12/5/2025) resume a tese: “A extinção das obrigações tributárias requer quitação, conforme art. 191 do CTN, não sendo possível a extinção com base em lei ordinária, como a lei 11.101/05”.
Resta indefinida a questão importantíssima da exoneração ou não dos garantidores. Há apenas um acórdão que aborda o tema diretamente, sugerindo o caráter personalíssimo do benefício legal do art. 158 da LRF:
Seja como for, a extinção das obrigações abrange apenas o falido, não sendo possível decretar a extinção de obrigações e obstar atos constritivos de outros processos em desfavor de coobrigados pelas dívidas falimentares. Nesse ponto, a lei 11.101/05 nada diz sobre a extinção das obrigações de terceiros, ao mesmo tempo que seu art. 115 expressamente afasta do regime falimentar sócios de responsabilidade limitada e coobrigados [...]. (apelação cível 1027832-16.2021.8.26.0004, rel. des. Carlos Alberto de Salles, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 27/11/2024).
Sobre tal posição, já fizemos análise crítica no texto “Extinção do Aval na Falência”, publicado no Migalhas em 4 de abril de 2025. Em primeiro lugar, não se pode confundir coobrigação com garantia. Tratando especificamente desta, e no caso do aval, destacamos que o argumento pela não extinção por ser garantia “autônoma e abstrata” é conceitualmente impreciso para o contexto da falência. A autonomia do aval diz respeito à inoponibilidade de exceções pessoais; a abstração, à desnecessidade de perquirir a causa da obrigação do avalista (kausa).
Como toda garantia, o aval é acessório em relação à obrigação garantida. A dívida do avalizado não é a kausa do aval, mas sim sua “causa pressuposta”. A existência de uma obrigação principal a ser garantida é pressuposto lógico para a existência da garantia.
Nessa linha de raciocínio, quando a “causa pressuposta” desaparece - ou seja, quando a obrigação do falido é extinta (art. 158 da LRF) -, a garantia acessória deve, por consequência, extinguir-se também. Este é o destino comum de outras garantias, como o penhor e a hipoteca, quando a obrigação principal se extingue (arts. 1.436, I, e 1.499, I, do CC).
A situação é distinta da recuperação judicial. Lá, o art. 59 da LRF estabelece expressamente que a novação dos créditos “não prejudica as garantias”, criando uma exceção legal à regra geral da novação (art. 364 do C). Na falência, o art. 158, não contém ressalva similar. A extinção das garantias opera-se ope legis.
4. Conclusão: unfresh start
A lei 14.112/20, ao introduzir hipóteses mais céleres de reabilitação, como o decurso do prazo de três anos ou o encerramento da falência por falta de ativos, representou um avanço na direção do princípio do fresh start. Porém, os acórdãos do TJ/SP revelam um entendimento de que a extinção das obrigações do falido é um benefício condicionado a requisitos estritos e com efeitos limitados.
O fresh start brasileiro, na interpretação do TJ/SP, convive com duas importantes ressalvas que mitigam seu alcance. A primeira é a de que a reabilitação não alcança os créditos tributários, os quais sobrevivem à falência e continuam a onerar o devedor em razão da hierarquia legal do Código Tributário Nacional. A segunda é a falta de clareza sobre a exoneração de garantidores.
Portanto, o sistema de insolvência brasileiro ainda está em um unfresh start.
Fonte: Migalhas.
(48) 3433.8525/3433.8982